ANALISE CRIATIVA DE UMA PINTURA - PARTE I
TB sobre A CHAROLA DO CONVENTO DE CRISTO
Autoria: DEGRACONIS

Pois é meu caro amigo João, só poderíamos ter escolhido um quadro que nos levasse a fazer mais uma viagem mental por estes mundos, à semelhança da imagem que afinal não era a estrela de Santa Maria mas a de uma outra igreja qualquer, a qual brevemente abordaremos. Como diz o Rui Ferreira, muita conversa poderemos ter a partir do quadro. Tivéssemos tempo e letras para isso.
Alguém já nos facultou um link que permite facilmente perceber a similitude entre a construção circular da pintura e a nossa Charola Templária. Era ai que queríamos chegar com a semi-publicação da foto. Aguardávamos o desenvolvimento do tema do Manto para depois então avançarmos charola acima. Mas pelos vistos não há charola que espere lol (charola também é nome vulgo para ambulância pelo que o Azul me disse).

O interesse pelas edificações de planta circular que surge no século XIX, não apenas pela sua raridade em relação às outras construções, mas também pela sua aura de misticismo, leva à defesa da teoria de que era hábito essa forma nas construções Templárias. Contudo se na verdade tal não tem correspondência plena com a realidade, em Tomar efectivamente tem, pois temos uma rotunda templária oitavada.
É sobejamente conhecida a tipologia do Templo de Salomão pelas descrições bíblicas que nos dão conta da sua forma rectangular, contudo o parco conhecimento histórico e arqueológico de Jerusalém gerou muita confusão na imagética do homem medieval, justificando-se desse modo, muitas vezes ser invocado o Templo de Salomão como protótipo de algumas construções de planta centralizada. O Templo de Salomão tinha sido destruído um milénio antes da propagação das igrejas pela Europa fora, tendo os cruzados encontrado no local desse antigo templo uma construção circular conhecida como a Cúpula do Rochedo. A confusão acentua-se bastante em virtude de ser essa construção, após a chegada dos cruzados, designada como Templum Domini, Templo do Senhor, havendo mesmo quem pensasse ser aquela construção islâmica sobre as ruínas de Salomão, o templo original.
Cúpula do Rochedo
Com o passar do tempo começam as crónicas dos cruzados a designar a Mesquita de Al-Aqsa como Templo de Salomão e a Cúpula do Rochedo como Templum Domini (continuando-se porém a pensar ser este o verdadeiro local do templo de Salomão), ambas na esplanada das mesquitas e contruidas no século VII. Uma com forma circular, como já vimos, e a outra com forma rectangular, que se apropriava mais às descrições bíblicas do Templo de Salomão.
Mesquita de Al-Aqsa onde os Templários se instalaram
Contudo, e apesar de os Templários terem a sua sede no Templo de Salomão (na verdade era o palácio de Salomão), optaram por escolher outro santuário como seu emblema - o Templo do Senhor - provavelmente porque o termo “templum” era partilhado pelos dois principais monumentos da esplanada. Qualquer que fosse a razão, o selo da Ordem carregava a imagem do Templo do Senhor e a inscrição “Sigillum Militum Templum Christi”.
Selos Templários da época de Gualdim Pais

Para agravar a confusão do pensamento medieval europeu, a par da Cúpula do Rochedo, existia em Jerusalém mais uma construção circular, o Santo Sepulcro. Portanto pelo facto de serem duas edificações centralizadas leva à identificação de ambas no imaginário ocidental.
Santo Sepulcro que inspirou na Europa uma série de Igrejas
A Charola em Tomar tanto pode ter tido como arquétipo uma ou outra, como ambas, mas com o alongamento da Charola no tempo de D. Manuel poderemos pensar que seria identificada inicialmente com Santo Sepulcro, na medida em que as construções circulares ou poligonais possuem conotações funerárias – e lembrem-se que possuía a Charola uma espécie de lanterna dos mortos – metamorfoseando-se mais tarde em replica do Templo Salomónico. Porém os selos que conhecemos do ínicio da ordem (sec XII-XIII) refletem a Cúpula do Rochedo e não o Santo Sepulcro, pelo que devemos ter algumas reservas na determinação da verdadeira intenção dos Templários Portugueses com a construção da Charola.
Antigos desenhos da Charola em Tomar
Mas não ficam por aqui os paralelismos entre a sagrada Jerusalém e Tomar na medida em que a própria cartografia de Tomar reflecte outras possibilidades simbólicas com a terra prometida. Se em Jerusalém o Vale de Jeosafá onde corre o rio Cedron separa a cidade, nomeadamente a Cúpula do Rochedo e o Santo Sepulcro do Monte das Oliveiras, em Tomar o rio Nabão de igual modo separa a Charola da Igreja de Santa Maria dos Olivais, sita a nascente como o monte palestiniano homónimo. Torna-se o terreno dos olivais que envolvem Santa Maria a réplica do Horto das Oliveiras.
Curiosamente podemos também verificar possibilidades simbólicas entre o quadro do Enguerrand Quart com a disposição da urbe nabantina. No citado quadro temos uma divisão que consiste em dois aglomerados populacionais murados e separados por um curso de água, sendo evidente a separação entre o que apresenta um teor militar com uma espécie de Charola e o outro que apresenta um teor de carácter religioso com a inclusão de igreja. Conhecemos a mesma tipologia em Tomar, com a Charola de um lado da margem do rio Nabão e do outro lado do rio a Igreja de Santa Maria. É conhecido o possível significado desses aglomerados do quadro, Roma e Jerusalém, mas não deixa de ser interessante a analogia que podemos traçar com Tomar, não fosse por demais evidente a similaridade da Charola de Tomar com a do quadro. Aliás ressaltou de imediato ao João e a mim.
Parte inferior do quadro onde se ve as duas urbes separadas por uma porção de água
O que interessa reter e será deveras interessante é que a pintura reflecte o imaginário do pintor, talvez apoiado em algumas descrições e desenhos, pois nunca este se deslocou a Jerusalém, reflectindo então a suposta “Charola” do Enguerrand a ideia generalizada que o homem ocidental tinha dos monumentos da terra santa, ou seja, idealizou uma charola semelhante à que em Tomar foi construída, talvez também esta a materialização de uma ideia que se generalizou na idade média, não obstante ser do nosso conhecimento a permanência do Gualdim Paes em terras do médio oriente. Tal como em Tomar, a Charola não se posiciona em lugar central da fortificação, mas sim num dos seus confins, aproveitando as barreiras naturais.
Fui também alertado pelo João para a semelhança entre o Cristo que na pintura se encontra dentro de uma igreja e o Cristo que actualmente se encontra no cruzeiro dos dormitórios do Convento em Tomar. Sabemos e podem verificar na foto que esse mesmo Cristo foi em tempos peça do altar da Charola, tendo sido deslocado para o cruzeiro no século passado, o qual se encerrou com uma porta tipo grade no ano de … Não sabemos no entanto quanto tempo permaneceu na Charola.


No Convento de Cristo em Tomar
Mas não se ficam por aqui as analogias. Se já citámos as relacionadas com a Charola há que voltar agora a Santa Maria, tal como em tempos o devem ter feito constantemente os Templários e os cavaleiros da Ordem de Cristo. O Cristo do quadro é uma imagem da missa de São Gregório, onde Cristo surgiu da hóstia para incrédulo de uma descrente. E não guardava a igreja de Santa Maria a relíquia de São Gregório que Gualdim Pais trouxe do oriente antes desta tomar guarida no convento e depois no Tesouro da Sé de Lisboa, onde ainda hoje pode ser vista. Pois é!!!! Mais um facto curioso. Não tarda montamos aqui um enredo do tipo Dan Brown. Não se trata do mesmo São Gregório mas são homónimos e do mesmo período. Não se trata da mesma figura de Cristo mas não deixou de nos impressionar visualmente pela sensação de “deja vu”.
Julgo que a trindade representada no quadro tem fundamento teológico na unidade de Deus que se manifesta de uma forma Trina, sendo talvez uma inovação plástica na forma de representação do Pai e Filho, caso a iluminura apresentada no fórum pelo Leon seja de data posterior, e que creio ser um extremo da ideia da unidade da Trindade, pois vemos Pai Filho e Espírito Santo decalcados uns dos outros.
"Quem me vê, vê também o Pai.(...) (João 14,15 e 16)
Note-se também o detalhe das pontas das asas na boca das figuras (muito haveria a dizer)
"Não credes que eu estou no Pai e o Pai está em mim?" (João. 14,15 e 16) "Eu estou no Pai e o pai está em mim" (João. 14, 11) "Eu e o pai somos um" "O Pai está em mim e eu no Pai" ( João.10, 30 e 38).
Mesmo Platão, anterior a estas questões teológicas cristãs afirmava na sua obra “República” que “o três é um, e o um é três".
Mais umas palavras teria ainda acrescentar, ate porque como diz o Luís de Matos, um pouco de cultura nunca é de mais, tal é riqueza da pintura apresentada. Talvez posteriormente se possa dar continuação ao tema.
Especiais agradecimentos ao João por algumas fotos que ilustram o post.
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