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2/23/2011

A MARCA DE GUALDIM PAIS - PARTE III

E os Misteriosos Subterrâneos
Autoria: CETHOMAR
(Degraconis)

 A MARCA DE GUALDIM PAIS
(Terceira parte)

Durante muitos anos se falou daquela noite. Muitas foram as histórias, muitas foram as versões do que aconteceu. Uma das histórias contava que, enquanto ele segredava as palavras ao ouvido do homem, uma luz tinha descido sobre Gualdim, outros disseram que aquele não tinha sido Gualdim mas antes um anjo do Senhor que, tomando a sua forma, tinha curado o possesso, e outros ainda que Gualdim tinha usado uma relíquia que tinha trazido consigo das cruzadas, relíquia essa que, segundo Gualdim, era uma das mãos de S. Gregório. Muitas foram as versões daquela história que foi narrada em primeira mão por pessoas que naquela noite nem sequer estavam presentes.

Houveram também vozes contrárias. Foi levantada a suspeita de que tudo teria sido orquestrado pelo próprio Gualdim para aumentar a sua fama, o seu poder e a sua influência. Segundo alguns ele teria pago ao homem para simular a possessão e a sua consequente recuperação.

Quanto a mim não soube durante muito tempo o que pensar. Nutri durante algum tempo a hipótese da conspiração levantada pelos rivais de Gualdim. Eu conhecia o homem e sabia bem do que ele era capaz, ter simulado tudo aquilo era algo que estava bem dentro das suas capacidades.

Mas na verdade tudo aquilo parecia ter surpreendido tanto o próprio Gualdim quanto todos os outros. Durante os dias seguintes ao suposto milagre Gualdim parecia imerso em uma devoção sem paralelo na sua pessoa. Parecia acreditar que tinha realmente realizado um milagre e esta percepção tinha agido sobre ele levando-o a um reforço temporário da sua fé e à renegação de todos os seus erros e pecados. De facto, e aos olhos de quem conhecia Gualdim, poderia parecer que o seu próprio feito, em vez de ter aumentado a sua arrogância, tinha contribuído para aumentar a sua humildade, e durante uns dias viveu no fervor de uma estranha fé, em jejum e abstinência, enquanto muitas pessoas lhe traziam os seus enfermos com a esperança que ele os pudesse curar. E foi no momento em que o seu êxtase era maior que ele gravou uma cruz numa pedra no contraforte da torre da igreja. Eu observei-o à distância enquanto ele a gravava com martelo e cinzel e a ela regressei muitas vezes depois daquele dia, como se aquela cruz encerrasse algum segredo, como se aquela cruz pudesse responder à questão do mistério do milagre de Gualdim, um tema pelo qual vivi obcecado durante muitos anos e para o qual procurava avidamente uma resposta.

Após gravar a cruz naquela pedra Gualdim começou, gradualmente, a ser o mesmo de sempre. O seu grande fervor religioso acalmou e cessou e ele voltou à comida, à bebida, ao jogo e às mulheres. Nunca mais, em toda a sua vida, ele voltaria a falar daquela noite. Nem mesmo quando estava às portas da morte, quase vinte anos mais tarde, e eu lhe pedi que me contasse a verdade, o que tinha realmente acontecido naquela noite. Quando ele morreu em Outubro de 1195 qualquer resposta que ele pudesse ter desapareceu com ele.

Foi quando eu já estava absolutamente convencido de que nunca haveria uma resposta definitiva que me pudesse ajudar a resolver o mistério que deparei com algo que ao menos me fez compreender um pouco a natureza do que se poderia ter passado.


(Texto: Velho do Restelo - Investigação histórica: Degraconis)

(continua)
Parte IV

A MARCA DE GUALDIM PAIS - PARTE II

E os Misteriosos Subterrâneos
Autoria: CETHOMAR
(Degraconis)

 A MARCA DE GUALDIM PAIS
(Segunda parte)

Hoje apercebo-me que Deus não se preocupa com os defeitos e os erros dos homens. Os homens são homens, é assim que é suposto comportarem-se. O que interessa a Deus pode ser uma única acção em que um homem, superando a sua condição, toca a divindade. É esse o agente da transformação: uma acção.

Eu e Gualdim chegámos a Lisboa depois de termos saído de Tomar e passado umas semanas em Almourol a supervisionar a construção de uns túneis. Era o final do verão e quando entrámos nas muralhas era final de tarde: dois finais que se uniram para cobrir a cidade com um manto de luz dourada que atingiu o seu auge no momento em que o sol estava para cruzar o horizonte. O nosso objectivo era a igreja de Santa Maria Maior e depois de termos deixado os nossos cavalos nas cavalariças do castelo entrámos fazendo o sinal da cruz e murmurando uma curta prece ao Senhor. Não estávamos sózinhos, a ocasião era especial e fomos recebidos, com toda a reverência que Gualdim exigia, pelo deão da igreja D. Roberto e pelo cavaleiro D. Gonçalo Viegas. Gualdim perguntou se já tinha chegado e, visivelmente emocionado, D. Roberto disse que sim, que tinha chegado aquela manhã, que estava na capela contígua. Dirigimo-nos até ao local e foi então que vimos os restos do corpo do mártir São Vicente cuidadosamente colocados em cima de uma mesa. Caímos de joelhos aos pés do mártir cujas histórias contavam de milagres diversos e não menos extraordinários do que aqueles do Nosso Senhor Jesus Cristo. Confesso que a emoção tomou conta de nós. Aos pés do Santo confessámos os nossos pecados, pedimos perdão e um lugar no céu, local do eterno descanso após as provações da vida terrena.

Naquela noite abrimos as portas da igreja aos devotos para mostrar São Vicente à cidade. Foi rezada uma missa em nome do santo, uma espécie de boas vindas para aquele que a partir daquele momento iria ser o protector da cidade. Lisboa compareceu em massa, muitas foram as pessoas que ficaram fora da igreja à espera de poder entrar para ver e tocar no santo. Coxos, paralíticos, zarolhos, manetas, cegos, mudos, surdos, gagos, doentes e miseráveis de toda a espécie entraram na capela, alguns pelos braços de familiares e amigos, outros sózinhos. Eu e outros estávamos na capela na vígilia do corpo, o Bispo abençoava com água benta aqueles que iam entrando. Naquele momento Gualdim percorria os subterrâneos e as passagens internas da igreja que tanto o intrigavam e que, segundo contava a lenda, precediam a igreja e estendiam-se nas profundezas da terra.

Ao fim da noite, quando a capela estava para ser encerrada e as ultimas pessoas entravam na esperança de serem abençoadas pelo santo, estava à porta um homem que não queriam deixar entrar. Corriam umas vozes que era um possesso, outras diziam que era um impostor, mas havia o medo geral que este homem tivesse intenção de danejar o corpo. Discutimos entre nós mas foi Gualdim quem interviu, vindo das catacumbas, e defendeu que o homem devia ter o direito, como todos os outros, a estar na presença do santo. Não havia como contradizê-lo, todos aqueles que conheciam a reputação de Gualdim sabiam que seria melhor ficarem calados e assim o fizeram.

O homem não era velho mas também não era novo. Caminhava lentamente tremendo e arrastando as pernas e ao entrar na igreja tirou o capuz que lhe cobria a cabeça e fez o sinal da cruz ajoelhando-te e beijando o chão de pedra. Ajudámo-lo a levantar-se e acompanhámo-lo até ao corpo. E por duas vezes caiu no caminho e por duas vezes colocámo-lo de pé segurando-o com força para que não caísse enquanto soltava gritos que ecoaram pelas paredes e pelos nichos da igreja levando os devotos ainda presentes a fazerem o sinal de santa cruz procurando com ele afastar o diabo. Olhámos uns para os outros e murmurámos preces pedindo protecção ao Cristo redentor. E foi perante o corpo do santo que o homem caiu pela terceira vez e se deixou ficar no chão a tremer no mais feroz de todos os seus ataques. O bispo ordenou que todos se afastassem e que ninguém lhe tocasse pois o diabo poderia passar para um de nós e assim o fizemos, com alívio é verdade, porque ninguém queria qualquer contacto com aquele miserável. O homem continuou a contorcer-se no chão. No auge do seu ataque começou a engolir a própria língua, parecia que ia sufocar. Alguém gritou que alguma alma piedosa o ajudasse mas o bispo avisou que apenas Deus o poderia salvar, que ninguém se deveria aproximar. E foi então que Gualdim apareceu e empurrou o padre e todos aqueles que se estavam entre ele e o homem e, ajoelhando-se, meteu-lhe a mão na boca e desembrulhou-lhe a língua. Em seguida colocou a sua cabeça entre os seus braços, todo o corpo do homem ainda tremia, e foi então que lhe começou a segredar alguma coisa ao ouvido.

Durante muito tempo muitas das pessoas que estavam presentes ali naquela noite disseram que ouviram Gualdim dizer isto ou aquilo. É mentira. Eu era uma das pessoas mais próximas dos dois homens naquela noite e posso assegurar que não se ouviu mais do um ténue murmúrio imperceptível.

O que se passou a seguir foi falado e repetido pelas sete colinas de Lisboa nos dias e nas semanas seguintes.

O homem parou de tremer e, levantando a cabeça, olhou em redor para todos os que olhavam para ele e perguntou o que se tinha passado. Foi então que alguém gritou milagre e outras vozes seguiram a primeira. O homem levantou-se e depois dele Gualdim para o qual todos olharam com uma expressão de assombro. O homem começou a caminhar e todos se afastaram para o deixar passar e depois Gualdim, a quem muitos chamavam de milagreiro e de santo. Alguém se aproximou dele e perguntou-lhe o que tinha ele dito mas Gualdim recusou-se a responder. Muito dias depois também eu haveria de tentar a minha sorte mas sem qualquer sucesso. O homem possesso afirmou não se lembrar de nada, nem sequer de ter entrado na Sé.

(Texto: Velho do Restelo - Investigação histórica: Degraconis)

(continua)
Parte III

2/14/2011

A MARCA DE GUALDIM PAIS - PARTE I

E os Misteriosos Subterrâneos
Autoria: CETHOMAR
(Degraconis)
S
Como intróito publicamos uma história, dividida em quatro partes, e que servirá de mote ao texto do post propriamente dito. Fazemos agora uma pré-publicação desse texto de introdução, o qual foi desenhado conforme a realidade histórica que apurámos no âmbito da investigação em causa. Naturalmente algumas partes são ficcionadas mas no seu geral está de acordo com os documentos que iremos apresentar como conteúdo do texto da investigação.


A MARCA DE GUALDIM PAIS
(primeira parte)

"Não é possível falar do nascimento de Fernando Martins sem antes falar de Gualdim Pais, já que ambos os homens estão ligados por um nexo de causalidade tão grande que a existência do primeiro sem o segundo parece-me impossível.


Hoje, há luz de todos os anos que vivi e de tudo o que presenciei, posso dizer que fui o homem que melhor conheci Gualdim Pais embora não fossemos particularmente amigos ou íntimos. De facto, não nutria pelo homem nenhum sentimento de profunda estima e amizade nem, em algum momento, abstive-me de criticá-lo por qualquer coisa que possa ter dito e feito. Mas quis Deus que eu estivesse presente em grande parte da sua vida e, neste momento, não posso desejar que assim não fosse.

Gualdim Pais era um homem. Não era extraordinário nem grande nem particularmente generoso e, se não fosse a posição que um dia veio a ocupar e que mais tarde exigiu que se fizesse dele um símbolo, podia perfeitamente ter passado incógnito pela história, como tantos antes e depois dele. Claro que tinha algumas qualidades que lhe valeram o título de Mestre da Ordem do Templo em Portugal. Era um bom guerreiro que tinha alguns conhecimentos de estratégia militar e tinha fé, coragem, ambição e alguns amigos poderosos, entre os quais o Rei D. Afonso Henriques. Mas os amigos nem eram muitos, ou pelo menos amigos que pudessem ser considerados verdadeiramente como tal.

Desenganem-se, eu não fui seu amigo. Porque haveria de o ser? Era um homem gordo e insolente cuja única coisa que gostava mais que combater era comer. E também de beber e de jogos de azar, e de mulheres. Gualdim adorava mulheres. E com o passar dos anos e à medida que aumentava o seu poder ele ia piorando. Os seus ataques de ira iam-se tornando cada vez mais desmedidos e mais frequentes. Não sabia perder e não sabia beber. E depois de qualquer excesso tinha por hábito ir até à capela com a esperança de remendar os seus erros. Tinha um medo terrível do inferno e à medida que a morte se ia aproximando maior era este medo.

No entanto os poucos amigos que tinha eram-lhe completamente fiéis e desculpavam o seu comportamento atribuindo-o às vicissitudes de um temperamento incompreendido que apenas lhe servia para mascarar a sua verdadeira natureza. Ele retribuía essa fidelidade. Estava sempre presente quando um dos seus amigos tinha necessidade e sempre pronto a defendê-los numa luta quer a razão estivesse do seu lado ou não e independentemente do perigo que pudesse correr. Era generoso com eles, à sua mesa nunca faltava comida nem bebida. Era um bom organizador e sabia gerir o dinheiro e expandir o património.

A maior parte dos homens que comandava tinham uma confiança irrealista nas suas capacidades. Corriam histórias das suas façanhas na batalha de Ourique e na Palestina, a maior parte delas inventadas e, quase seguramente, espalhadas por ele. Queria inspirar temor e respeito, queria que os seus amigos o admirassem e inspirar terror nos seus inimigos. Ninguém lhe pode tirar o mérito de ter conseguido o que queria.

No fundo o semblante de Gualdim Pais mudava conforme a posição de quem olhava para ele e o tamanho das suas sombras dependiam da hora do dia. Era difícil ter uma visão completa daquele homem que suscita em mim, simultaneamente, um sentimento de repulsa e de atracção.

Mas a questão que se segue é qual é a sua ligação com Fernando Martins, já que ambos nunca se cruzaram nem nunca se conheceram. Já que ambos os homens são tão diferentes que têm apenas em comum o facto de comungarem da mesma fé e que esta crença os levou em viagens pelo mundo fora embora um tenha lutado com a espada e o outro com a palavra.

A ligação é muito subtil e é normal que escape ao olhos de alguém que não tenha presenciado de tão perto os acontecimentos que a criaram e que eu tive a fortuna de observar. Uma ligação tão importante quanto fundamental para desvendar os segredos quer de um quer de outro e talvez compreendê-los melhor.


Parte II

(Texto: Velho do Restelo - Investigação histórica: Degraconis)