Este ensaio é estruturado em duas partes. A Primeira leva-nos a uma viagem por “coisas” do Céu, e na qual seremos guiados pelo Frei de Tomar, a segunda precipita-nos directamente no Inferno, onde conviveremos com Deuses Infernais.
Antes porém, e para os mais incautos, lembro que a invocação de Santa Maria nos posts do Blog, nem sempre deve ser encarada unicamente no seu sentido literal. Estão em Santa Maria do Olival sepultados todos os mestres templários portugueses, com efeito, falar de Santa Maria, ou mesmo invocá-la é também invocar o Espírito Templário que reside nesse local, um Genius Loci.
APRESENTAÇÃO
Que dizem as obras de arte e o que representam? É possível que por debaixo dos nossos olhos os artistas tenham dissimulado mensagens heréticas ainda hoje não reconhecidas e que fazendo parte da estrutura da obra lhes aumente o valor artístico? Teria sido Portugal como país periférico palco de uma libertinagem criativa por parte desses artistas?
O pensamento medieval reorganizou o vasto reportório de símbolos do passado, como sejam os códigos da antiguidade clássica, e os transformou numa nova concepção teológica e religiosa do mundo, tendo-se perdido com o passar dos tempos as chaves que permitem leituras mais profundas desses símbolos que hoje são encarados como meramente estéticos ou decorativos.
Apenas no século XVII, surgem dicionários e tratados que condensam esse vasto reportório iconográfico, para que o artista os possa utilizar de uma forma eficiente sem correr o risco de não ser entendido. Baliza-se assim o pensamento simbólico às definições que essas enciclopédias obrigavam em detrimento da imaginação individual de cada criador, verificando-se consequentemente a mera aplicação mecânica desses conceitos. Perdia-se na arte a sensibilidade simbólica em prol de uma objectividade tão característica do pensamento moderno.
Num período anterior à famosa obra “Iconologia” de Cesare Ripa (1593), exemplo maior da codificação de símbolos e emblemas numa obra escrita, e ainda anterior aos efeitos que se fizeram sentir com as directivas Tridentinas resultantes do Concílio de Trento (1545 a 1563), que definiram o que seria licito aos artistas representar e de que modo, assim como o que seria considerado herético, encontramos em Portugal a representação pictórica da Morte da Virgem com aspectos muito peculiares em relação ao que se verifica no resto da pintura quinhentista produzida na Europa, designada também como Trânsito ou Dormição da Virgem.
A propósito, as normas contra reformistas do Concílio decretaram as imagens das Trindades Trifontes como heréticas, continuando apenas a representarem-se em espaços rurais longe dos “visitadores” tridentinos, e executadas muitas vezes por artistas não eruditos, conferindo-lhes então apenas uma fuga heterodoxa aos rígidos preceitos oficiais, não se lhe podendo atribuir intenções heréticas. Em Tomar, vários se encontram, das quais a mais conhecida, é a do designado “Hermes Trimegisto”.

Aqui começa as primeiras pinceladas da minha história em busca do significado da romã nos quadros quinhentistas da Morte da Virgem.
O MISTÉRIO DA MORTE DA VIRGEM

Nesta obra de Cristóvão de Figueiredo, em actividade entre 1515 e 1543, vemos a virgem no leito da morte a segurar um círio, confortada por São João Evangelista vê-se rodeada pela presença dos doze Apóstolos. Doze Apóstolos? Mas não tinha Judas morrido logo após a crucificação de Cristo? Indignado com este número de apóstolos em redor da Virgem, surge um artigo num blog intitulado “O Mistério dos Apóstolos de Lisboa”.
Respondi de imediato ao artigo, em forma de comentário, de que não se tinha de indignar com tal número, nem mistério algum encerrava.

Nas investigações posteriores que levei a cabo, descubro que não é só este quadro relacionado com a Morte da Virgem que inclui uma romã, mas também as dos outros grandes pintores quinhentistas portugueses. Informo que não encontrei a presença dessa natureza morta na pintura europeia da época. Será uma inovação iconográfica única e exclusivamente portuguesa? Não seria a primeira, e logo que oportuno darei conhecimento de outra solução iconográfica que encontrei em Tomar, desta vez, noutro tipo de suporte artístico. (esta esse trabalho concluído mas o facto de apresentar 30 páginas obrigar-me-á a reestrutura-lo para publicação no blog).

Verifica-se em mais um quadro do Cristóvão de Figueiredo esta persistência de pintar a romã, mas neste surge Jesus Cristo revelado, o que constitui iconografia rara na pintura portuguesa e também no resto da Europa, excepção se faça ao mundo bizantino. Também em Gregório Lopes, pintor régio de D. Manuel I, e no Mestre de Ferreirim, se assiste a inclusão da romã na pintura. Todos esses quadros, referentes ao mesmo episódio, e todos eles de grandes mestres portugueses do mesmo período. Repare-se que chegaram estes a trabalhar em conjunto em algumas oficinas, o que permite aquilatar a troca de influências.
Curiosamente, não é só a romã que se repete nas diversas pinturas, mas também a presença de uma faca, e em alguns, a representação de um copo coberto com um pano de linho que parece constituir uma espécie de filtro para a maceração dos grãos da romã que em todas pinturas aparecem desfeitos. Mesmo quando não se verifica a presença da romã, é facilmente constatável ver os grãos da Romã desfeitos num recipiente.

sssssssssssssssssse detalhes das obras, onde se constata a repetição de motivos
Que mistério encerra a romã e os restantes elementos? Não se trata de um quadro mas sim de quatro onde sistematicamente se reproduzem motivos tão específicos como um copo coberto por um pano. Necessariamente encerrava uma intenção, que à falta de legenda, se tornava num mistério.
Um aparte; Dan Brown, apoiado na feminilidade da personagem de São João Evangelista da última ceia de Leonardo Da Vinci, identifica a imagem de Maria Madalena, no entanto em Portugal encontramos esse mesmo facto curioso, e é de tal forma exacerbado que a edição dos Museus do Mundo do Público referida pelo Blogger atrás referido, comete o erro de o descrever no quadro de Gregório Lopes como sendo Maria Madalena, esquecendo-se que assim só se verificaria a presença de dez apóstolos. Mas andamos a perder Apóstolos? Podíamos nós portugueses ter servido os propósitos de Dan Brown ainda com maior clareza, quisesse ele.
Antes de avançar no labirinto de significados para o entendimento desta obra, e mais em concreto para o significado dos elementos que se repetem, com seja a romã, os grãos desfeitos, a faca e o copo, terei que dar-vos a conhecer um vulto da literatura espiritual portuguesa, o qual encerra a chave para um primeiro nível de entendimento dessas representações insistentes. Tinha ele que ter íntimos laços com Tomar.

Obras de grandes mestres da pintura europeia, onde eventualmente apenas se figura símbolos marianos fácilmente reconhecíveis. como seja o Terço, o Livro de Orações e uma Vela.
FREI ISIDORO DE BARREIRA

A titulo de curiosidade, ainda antes de avançar para o significado da romã, posso adiantar-vos que na sua concepção global, apresenta o livro a árvore como símbolo do ser humano, as folhas como as palavras, os ramos os desejos, por raizes entende-se os segredos dos homens, por flores as esperanças e por frutos as suas obras.

Esta obra tão distante e curiosa é fundamental para o entendimento do significado dos diversos elementos que encontramos nas obras de arte, e para as quais não temos as chaves que as permitem decifrar correctamente. Tal é a distancia do pensamento do homem moderno do medieval. Entre raizes e frutos se questiona, também hoje, o sentido da vida, na qual as raizes telúricas alimentam a esperança da colheita.
Deixemos temporáriamente respirar um pouco as flores e plantas do Frei Isisdóro de Barreira para depois voltarmos a elas e alcançarmos o significado da romã.
SIMBÓLICA GERAL DA ROMÃ
O simbolismo da romã está ligado ao simbolismo mais geral dos frutos que têm muitas pevides (cidra, abóbora, laranja,). É, antes de mais nada, um símbolo de fecundidade, de posteridade numerosa, assim como de fertilidade.

Quando figurada na mão da Virgem Maria pode significar Castidade. Esta interpretação terá a sua base no cantico dos canticos IV 12-13. Quando na mão de Cristo pré-figura o sacrificio na Cruz, visto o seu suco avermelhado representar o sangue de Cristo, não obstante, como símbolo da igreja ser também ele, o seu fundador.

Estes são em termos gerais os significados que se lhe atribuem e que podem verificar na internet ou num dicionário de símbolos, porém ficam estes significados aquém do que os pintores portugueses pertenderam com a inclusão da romã num cenário que pouco terá haver, pelo menos directamente, com um cenário fúnebre. Como símbolo de fertilidade, fecundidade ou castidade não encontra contexto na cena retratada. Como símbolo da igreja já não será despropositado, mas deixemo-nos levar pelos aromas de Frei Isidóro de Barreira para chegar às raizes, ou seja, ao segredo.
O PRIMEIRO SEGREDO DO QUADRO REVELADO
A romã em todos os cenários retratados pelos pintores portugueses em questão apresenta-se descarnada e seus bagos colocados dentro de um recepiente, que é o mesmo que dizer, a romã encontra-se DESFEITA. Tal é o espirito que os apóstolos vivem naquele momento de agonia da Nossa Senhora, a saber que, estava o mundo cristão prestes a perder o segundo maior vulto do seu panteão de figuras santas. Encontrava-se a assembleia de Deus, constituida pelos seus apóstolos e feis, DESFEITA, à semelhança da romã. Esta é símbolo da Igreja, e repare-se que São Pedro, primeiro Papa, olha precisamente em direcção à romã.
Mas que dizer da inclusão de um copo com um pano de linho a cobri-lo? Elemento que se repete nas pinturas portuguesas. Com efeito, estão presentes os utensílios necessários à obtenção do suco da romã, ou seja, pela massaração de seus bagos obter-se o designado Vinho de Romã.
Frei Isidoro não só dá um significado geral à romã – conformidade - de acordo com o posterior Tratado de Iconologia do conhecido Cesaear Ripa (concórdia), como lhe lhe atribui mais uns quantos, conforme a parte da romã retratada:
Flor da Romã: Perfeição; Casca da Romã: Modestia e Vinho da Romã: ?
O cenário do ciclo iconográfico da Virgem em questão é de tristeza e emoção, de lágrimas, mas contidas. Como poderiam os fieis acreditar na ressureição e chorar a morte? Seria contraprudecendente para a fé cristã derramar lágrimas, arriscaria-se a meter em causa a crença na mais espectacular e original inovação desta nova religião, o dogma da ressureição do corpo. Contudo de lágrimas sem dúvida.
Surpreendememente Frei Isidóro em relação ao significado do Vinho de Romã escreve que este é o de Lágrimas. E que lágrimas são essas? Deixemos em jeito de homenagem ser ele próprio falar-nos directamente do Convento de Cristo à nossa alma.

Poderia agora deixarei o leitor reinterpretar o quadro à luz das sublimes frases que sublinhei, mas já agora mais umas quantas.
Conseguiram os mestres portugueses de uma forma genial incluir a emoção das lágrimas no cenário. São lágrimas doces, daquelas que não se entregam à Deusa Gaia mas que ascendem ao mundo de Zeus. Questiona Frei Isidoro sobre o que deverá a alma entregar a seu esposo (cristo). A resposta é um copo de mosto de romãs que são lágrimas de devoção e compaixão. Entrega Santa Maria naquele momento a sua alma a Cristo, que de forma serena se encontra a seus pés para a receber.
E que lágrimas são as dos apóstolos, senão as de devoção a Santa Maria. Adianta-nos também que o mosto de romãs são desejos de martirio e vontade de padecer em atribulações por amor a Deus. Não viriam a ser os apostólos ali reunidos os primeiros mártires do cristianismo? (muito haveria para dizer, pois só vos dei a conhecer a primeira página de sete dedicadas ao significado do vinho de romã)
Nos dias de hoje tornou-se hábito fazer leituras anacrónicas dos símbolos do passado, mas Frei Isisdóro deixou-nos um legado que permite ler com os próprios olhos do passado. Podiamos ter tentado compreender os significados directamente nas escrituras, mas não teria sido tarefa fácil chegar ao entendimento que a mentalidade da época tinha da realidade. Infleizmente só nos chegou ao dias de hoje o primeiro volume da obra do Frei Isidóro de Barreira. Compete-nos a nós o resto do trabalho.
Contudo, apenas se encerra agora o primeiro ciclo de interpretação, encerra o quadro de Cristovão de Figueirdo outro patamar de possibilidades simbólicas, heréticas porém.