Autoria: CETHOMAR Círculo SC
(Degraconis e Voltron)
A pintura mural da Lenda de São Cristóvão na Charola
Nove e sete da noite. O encontro estava combinado junto à estátua de Gualdim Pais. Mesa reservada no restaurante “o Tabuleiro”. A conversa iria ser anotada, memorizada e gravada. Personagens: Degraconis e Voltron.
DG: Então como conseguiste ver a Ave na pintura mural do São Cristóvão? Nunca ninguém me referiu a sua existência. São escassos, senão raros, os escritos sobre essa pintura.
VR: Para dizer a verdade, foi a ave que me descobriu! Senti algo a observar-me na pintura! Olhei, e entre as folhas verdes da árvore, existia uma presença estranha. Era ela… que fazia ali aquela ave? Misteriosa e talvez de grande importância… quem sabe?
A Ave dissimulada nos troncos da árvore
DG: Misteriosa e oculta! Das centenas de imagens que analisei antes de escrever um dos anteriores posts, nenhuma inclui uma ave na árvore, pelo menos como esta, sozinha. Algumas pinturas incluem-nas, mas julgo serem meramente decorativas ou parte integrante da paisagem em que o pintor enquadrou esse episódio da vida de S. Cristóvão. Esta é diferente. Apesar de oculta tem bastante destaque a partir do momento em que damos conta dela. Na lenda também não consegui encontrar referência explícita à existência de uma ave.
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Pinturas da Lenda de São Cristóvão
VR: Além da ave, se observares bem, de todas essas imagens que recolheste e me deste a ver, conseguirás perceber a presença repetida de um homem com uma candeia na mão! Na pintura mural da Charola também esse homem está presente! É um elemento característico das pinturas de São Cristóvão! Mas se reparares bem na pintura, vais verificar que ele está mesmo em frente do pássaro… até está a olhar para ele! Mas o mais interessante é o que ele segura na mão! Aquilo poderá ser, segundo as minhas conclusões, uma gaiola!
A suposta candeia que entendemos talvez ser uma espécie de gaiola
DG: Uma gaiola? De facto essa candeia também é uma presença constante na generalidade das pinturas conhecidas. Inicialmente tive algumas dúvidas sobre esse objecto que o “ermita” segura na mão, mas da comparação entre as diversas imagens que pude analisar, concluí, sem qualquer dúvida, que se tratava de uma candeia. O que me permite afirmar com segurança essa conclusão, é o facto de em algumas pinturas essa suposta candeia ser mesmo representada como um facho de luz. Possivelmente a Luz de Cristo, se pensarmos que foi precisamente essa personagem que deu a conhecer Cristo a S. Cristóvão.
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O ermita em diversas pinturas nitidamente com uma candeia na mão
O ermita com um facho de luz na mão
VR: Pois, mas neste caso…
DG: Podemos então pensar que estamos perante mais uma pintura Portuguesa que, quanto a esta lenda, apresenta alguns aspectos sui generis em relação à pintura europeia. Mas achas mesmo que não se trata de uma candeia e sim de uma gaiola?
VR: Aquilo não é uma candeia! Não existe nenhuma cor que evidencie uma iluminação, e para além disso tem uma espécie de porta pequena aberta na direcção do pássaro!
DG: De facto o seu interior parece ser de um forte negrume. De luz parece nada ter.
Detalhe
VR: Exacto. Chegas à mesma ideia a que eu cheguei.
DG: Voltando à ave. De que pássaro se poderá tratar?
VR: Já estive a pensar muito nesse assunto! Estudei aquela ave e cheguei a algumas conclusões! O tamanho da ave, o bico e o pescoço comprido são algumas das características que analisei na pintura. Características tais, que quase me fizeram acreditar tratar-se de um abutre, especialmente da espécie grifo. Mas já coloquei de parte essa possibilidade. Outra possível hipótese é ser uma andorinha. Para dizer a verdade, já nem sei se aquilo representa uma ave real ou apenas uma ideia!
DG: Não seria de estranhar ser apenas a ideia de uma ave e não se tratar de uma espécie de ave em concreto. Contudo até sou capaz também de reconhecer uma andorinha como bem disseste.
VR: Então que simbolismo podemos encontrar numa andorinha que nos possa reforçar a ideia?
DG: Possivelmente não será uma andorinha e talvez nunca venhamos a saber o que pretendeu o pintor ali representar. Todavia, só por si já lhe podemos apontar um simbolismo evidente, ou seja, aquele que é usual atribuir às aves.
VR: O qual deve ser alto visto conseguirem voar próximo do céu…
DG: …e longe da terra. Sim, isso levou a que os autores dos bestiários aproveitassem a natureza desses animais para extrair ensinamentos moralizantes elevados.
VR: Então e sobre a andorinha em particular?
DG: Antes de mais, temos sempre que pensar em que tradição se vai interpretar o objecto visto poder diferir bastante de cultura para cultura. Não temos dúvidas que neste caso, estamos perante a tradição cristã, contudo, teremos de pensar se a sua representação é anterior ao Concílio de Trento ou não. Ou seja, sem esta contextualização simples, arriscam-nos a nem chegar próximo do que a imagem pretendia transmitir aos iletrados que a viam.
VR: De facto…
DG: A andorinha, pelo facto de ser uma ave migratória, tornou-se um símbolo da ressurreição de Cristo. Assim como Cristo desaparece e volta aparecer após três dias, também a andorinha se deixa de ver e volta a surgir na primavera.
VR: Espera ai! Queres tu dizer que anuncia então a primavera? Não é sinal de Primavera a presença abundante das flores na pintura! Fantástico!
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Pintura onde se repete a presença de flores
DG: Bem visto. Todavia lembro-te que a lenda refere a árvore ter florido e talvez daí a presença das flores. Volto a repetir que temos ter cuidado com as identificações que tentamos fazer, assim como os sentidos que lhes atribuímos.
VR: Pois…
DG: Conta uma antiga lenda que quando a Andorinha regressou dos misteriosos locais onde se recolhia durante o Inverno, ao passar por Jerusalém, deparou-se com Cristo crucificado, tendo então “vestido” uma capa negra para fazer luto.
VR: Ainda hoje a mantêm vestida então. Achas que a ave pode representar a alma de São Cristóvão?
DG: É uma hipótese. As aves, mais concretamente as suas asas, costumam representar a alma do homem. Se neste caso estivermos perante uma andorinha, até te posso dizer que representaria a alma penitente e dos arrependidos. Esta é uma das interpretações específicas da andorinha. Terei agora dificuldades em explicar porquê, mas podes consultar o Livro das Aves escrito no séc. XII, seguindo a tradição de interpretar simbolicamente e alegoricamente a natureza de vários animais e ainda de seres fabulosos, de pedras etc. Em Portugal surgiu uma adaptação desses manuscritos no Convento do Lorvão.
Da esq - dir.: Rola, Fénix, Corvo, Andorinha, Codorniz, Águia, Palmeira e Pomba
Livro das Aves, escrito em 1183, Mosteiro do Lorvão
VR: São Cristóvão é sem dúvida uma alma penitente e arrependida. E à árvore poderemos atribuir algum sentido em especial?
DG: Sim, mas acho que não vale a pena tentarmos associar-lhe algum sentido em particular. Caso fosse uma palmeira, o seu sentido seria facilmente apreendido. É uma árvore que só apresenta sentidos positivos e até se associa a Cristo.
VR: Mas não será uma palmeira certamente.
DG: Ainda sobre a ave, podemos pensá-la como a ave-do-paraíso, se bem que essa não tem asas (sorrisos). Não precisa porque no paraíso não existe necessidade de esforço. Não estão sujeitas à penosa lei da gravidade (sorrisos).
VR: Essa é boa! Mas agora que falas de Paraíso penso na árvore do paraíso…. à primeira vista, pela cor do fruto e pela forma da árvore, pensei que fosse uma laranjeira. A laranjeira pertence à família das Rutáceas, que engloba mais de mil espécies, quase todas tropicais ou subtropicais. Caracterizam-se por terem folhas lustrosas, cujas glândulas segregam óleos aromáticos, e pelas flores, que têm cinco pétalas. Mas sabes que a laranjeira não é uma árvore nativa na Europa, assim como não o é na Península Ibérica! Segundo alguns estudos que fiz no passado, a laranjeira foi plantada na península pelos mouros, quando estes dominavam estas terras.
DG: Já agora sabes como se diz Laranja em Turco?
VR: Sim… portukal! E em árabe diz-se portucale, em grego é portokali e em romeno é portocal. Compreende-se que o seu nome é muito idêntico ao nome Portugal. Com esta informação quase chegamos a perceber que o nome do nosso país, oriundo do nome Condado Portucalense, deriva da palavra laranja em árabe. Uma ideia extravagente a juntar a tantas outras.
DG: Queres dizer que Portugal pode derivar de palavra Laranja? Pronto lá se vai a teoria romântica da sua origem graalistica. Como deves saber, existe a ideia entre alguns estudiosos do oculto, Portugal derivar da junção de Porto e Graal. O selo rodado de Afonso Henriques, no seu ver, reforça essa ideia. Estou impressionado com as laranjas! Quando estive na Turquia, achei curioso designarem o nosso país de laranja na língua deles mas nunca imaginei que o fosse em tantas outras línguas. Já agora em Chinês também!
VR: Não, mas apesar de os mouros terem plantado por cá laranjeiras, os portugueses, no tempo dos descobrimentos, trouxeram laranjas da China para a sua comercialização. É por isso que as laranjas são denominadas "portuguesas" em vários países, especialmente nos Balcãs.
DG: De facto, até sou capaz de conseguir ali ver uma laranjeira com as laranjas meias encobertas pela folhagem, o que permite justificar alguma da falta de esfericidade do fruto. Então e as flores? Não são brancas as flores da laranjeira?
VR: Sim, são! Mas as flores de fundo podem não pertencer à árvore ou pode ter as pintado dessa cor pr questões estéticas! E outro facto interessante é as flores da laranjeira terem cinco pétalas assim como essas flores!
DG: Todavia a lenda fala-nos de uma tamareira!
VR: Sim de facto, mas se observares bem, aquela árvore não tem características de tamareira! Para além disso, não existem tamareiras por estes lugares, como sabes!
DG: De facto uma Tamareira nunca será. Vejo que todas as flores têm 5 pétalas. O pintor deve ter-se inspirado numa laranjeira para esse efeito. Aliás existia um laranjal no Convento. Julgo que visível por detrás da Charola num iluminura quinhentista.
VR: Então vais gostar do que te vou contar a seguir! Sabes que nem todas as flores na pintura têm 5 pétalas! Existem 2, que eu descobri, que têm 6 pétalas!
DG: Não posso. Onde se escondem?
VR: Onde? Acredita que estão elas muito bem posicionadas! Uma em frente da cara de São Cristóvão e a outra mesmo ao pé do pássaro e da gaiola! Será coincidência?
DG: Não sei o que pensar.
VR: Sabes que simbolismo poderá estar aqui envolvido? Que sabes sobre o simbolismo das flores e das árvores?
DG: Tenho algum conhecimento, mas não é oportuno alongarmo-nos nesse tema. Todavia também te digo que não vale a pena tentar decifrar significados desses elementos, sem conhecer bem a obra de um antigo monge do Convento de Cristo…
VR: Referes-te ao Frei Isidoro de Barreira que escreveu o “Tractado das significaçoens das plantas, flores, e fructos que se referem na Sagrada Escriptura : tiradas de divinas, & humanas letras, cõ suas breves considerações”?
DG: Bem, conheces bem o nome do livro. Nunca consegui decorar o título por inteiro. Infelizmente, só chegou até nós um volume. É essencial para se entender os significados que andavam associados às flores, plantas e frutos, pelo menos numa primeira abordagem. Mas voltando à gaiola! O facto de a gaiola estar aberta, caso seja uma gaiola, indica que espera o pássaro ou que o libertou, não? Pela posição do pássaro, diria que o espera. Terá isso algum sentido ou será apenas um detalhe sem importância ou intenção?
VR: Como tu dirias, nada na arte sacra é aleatório ou sem intenção. Tudo é pensado ao detalhe mas também não consigo concluir por uma hipótese ou outra.
DG: Pois…
VR: Faz-me bastante confusão que em todas as pinturas que analisámos, o objecto que agora pensamos ser uma gaiola ser sempre, e sem margem para dúvidas, um objecto que emana luz e neste caso em nada parece partilhar essa ideia.
DG: Apenas no século XVII, surgem dicionários e tratados que condensam esse vasto reportório iconográfico, para que o artista o possa utilizar de uma forma eficiente, sem correr o risco de não ser entendido. Baliza-se assim o pensamento simbólico às definições que essas enciclopédias obrigavam, em detrimento da imaginação individual de cada criador, verificando-se consequentemente a mera aplicação mecânica desses conceitos. Perdia-se na arte a sensibilidade simbólica em prol de uma objectividade tão característica do pensamento moderno. Visto ser esta pintura mural anterior a esse período, poderá ser produto de uma má interpretação do pintor ou mesmo uma ideia sua desviando-se do que usualmente vemos retratado.
VR: Talvez nunca venhamos a sabê-lo… Quanto a às enciclopédias, referes-te a César Ripa?
DG: Sim, também. Mas antes de César Ripa e da sua monumental obra Iconologia, à que não esquecer, entre outros, Alciato e a sua obra Emblemata.
César Ripa (séc. XVII) e Alciato (séc. VXI)
VR: Independentemente de leituras simbólicas, já fico contente com a simples ideia de ter descoberto a Ave de S. Cristóvão e a gaiola, que possivelmente manteve-se escondida aos olhos de muitos que deambularam pela Charola nos últimos séculos.
DG: Também fico feliz apenas com esse pequeno detalhe.
VR: E se for ilusão óptica e tudo produto da nossa imaginação?
DG: O pintor não é alguém inspirado, mas sim alguém capaz de inspirar os outros, disse Dali. Talvez seja isso que nos esteja então acontecer!
VR: Foi uma bela inspiração!
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(Parte II - brevemente)
17 comentários:
Um especial obrigado e público ao Voltron pela atenção que deu aos diversos postes que se escreveram sobre SC e que o levaram a contribuir com mais uma descoberta (será?) quando pensávamos que já nada mais havia a dizer sobre SC. Eu pessoalmente não conhecia aquela ave e quantas vezes não olhei para aquela pintura. Foi olho de águia.
Nem o quadro conhecia mas gostei de ler o texto.
Adriana
Foi uma leitura interessante, uma de muitas que me tem prendido, cada vez mais à minha cidade. Só tenho um reparo sobre o termo laranja em Turco, crendo ser "portakal" o que me informaram, na minha visita a Istambul, há uns anos.
Olá Rui Nunes,
Também fiz a Turquia à uns anos e nunca mais me esqueci desse detalhe. Não sei no entanto se é portakal ou portokal mas lembro-me de eles brincarem com o facto quando sabiam que eu era de Portugal. Vou pedir ao Voltron que verifique visto depois ter sido ele a escrever isso. Contaram-lhe o que seignificava para eles em Portugal pedir uma cerveja super-bock?
DEGRACONIS
Vi isto agora no wikipédia: "A laranja doce foi trazida da China para a Europa no século XVI pelos portugueses. É por isso que as laranjas doces são denominadas "portuguesas" em vários países, especialmente nos Bálcãs (por exemplo, laranja em grego é portokali e portakal em turco), em romeno é portocala e portogallo com diferentes grafias nos vários dialectos italianos"
DEGRACONIS
Alguém esqueceu de colocar o link no fim do comentário para o forum.
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O vosso forum está cheio de spam
Já não está. Obrigado pela informação.
Em virtude do forum estar com muito pouco movimento não tem sido alvo de muita atenção.Devemos o ir fechar temporariamente para nos concentrarmos nas pesquisas que poderão levar à publicação de outros posts.
Por agora estamos concentrados no próximo encontro, o qual esperamos que vá de encontro aos V. interesses culturais.
Quanto ao facto de não estar um link no fim do artigo foi por esquecimento.
Infelizmente nem chegamos a receber comentários a dizer se gostaram ou não dos artigos que temos escrito.
É desmotivador mas não paramos por isso, pelo menos nos próximos tempos para os quais temos coisas programadas.
E mais uma manifestação de agrado: Gostei. Contudo não é este artigo ou tipo de texto que mais me entusiasma. Sou Toupeira.
Não consigo entrar no forum.
Interessante esta vossa conversa sobre a gaiola da luz, que tinha uma ave que ia voltar!
Sobre portugal, o país das doces laranjas, e o porto do graal, o país dos nossos pais e avós!
Sempre a aprender, obrigada!
O forum parece ter sido apagado. Não se consegue ter acesso desde ontem.Que se passa???
Não tenho email do google como posso meter-me como seguidor no blog?
Carla Pinto
Muito bem meus queridos
Vera Sarmento
Entroncamento
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