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10/28/2009

O CÚPIDO DA ANUNCIAÇÃO

Autoria: Degraconis e João
Parte I (de III)
Introdução à Quinta da Anunciada Velha em Thomar

Apesar de ainda não se ter anunciado em cartaz o próximo evento que ocorrerá em Dezembro, inicia-se desde já por partes uma série de posts dedicados ao local onde este irá ter lugar. Tal é a força do lugar que nos impele a tanta revelação.
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Expressões como “quem puder entender que entenda” ou “quem tiver ouvidos que oiça” não são de todo estranhas à literatura místico-religiosa de cariz hermético, as quais deixam antever que o grau de entendimento da obra depende do nível de sapiência de quem as lê.

Aludem essas advertências para a razão do homem ou para um dos órgãos dos sentidos, como sejam os ouvidos ou para os olhos no caso da expressão “quem tiver olhos que veja”. Decerto são expressões alegóricas, contudo, numa literatura de diferente espécie ou estilo, encontramos uma outra que sem rodeios e metáforas se dirige como uma seta ao que se torna imprescindível “ter” para entendimento da obra: Amor, simplesmente Amor. Refiro-me à expressão Camoniana inserida nos Lusíadas, como que a glosar a obra, “E sabei que, segundo o amor tiverdes, / tereis o entendimento de meus versos!” Dessa forma declara Camões que a épica obra que narra e enaltece a aventura dos Lusitanos só pode-se revelar totalmente segundo o Amor que tiverdes.
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Não será abusar se insistir que algumas das grandes obras portuguesas só são susceptíveis de acesso total através desse mesmo Amor que os Lusíadas exigem, e não me refiro à literatura somente. Também outros épicos, talhados em pedra, o evocam. Não é possível entrar no convento de Cristo – pelo pórtico principal – sem que não seja o visitante atingido pelas setas que uma criança alada, que se esconde na aduela superior que fecha o arco, segura na mão direita como que pronta a lançar sobre quem se atreva a transpor o pórtico. Trata-se de uma representação, como há poucas, de um cupido que sinaliza a entrada naquele espaço como o início de um circuito espiritual ou iniciático que obriga ao despertar do Amor. Caso quiséssemos ir mais longe na interpretação dessa alegoria, e na visão da tradição oitocentista dos escritores herméticos, como Sampaio Bruno, Rosseti ou Grasset d’Orcet, para os quais, desde o século XIV, o amor enquanto conceito equivale a “Anti-Roma”, sendo que Amor é anagrama invertido de Roma, poderíamos concluir que aquele local que foi outrora templário foi então sede dos “Fieis do Amor”, ou seja, infiéis de Roma.

Estaríamos assim, perante um enunciado heterodoxo nos seus preceitos secretos, o enunciado cifrado de uma entrada numa igreja “interior” ou “joânica” – António Quadros refere tal conceito a respeito da religião Templária - que se oporia à igreja papal. Seria o enunciado da igreja dos “Cavaleiros do Amor”, entendido como amor iniciático.

O destaque dado a essa figura, em lugar privilegiado no seio desse pórtico, é deveras interessante e intrigante, que aliás podemos referir como aparentemente desadequado num contexto monástico, visto o cúpido quinhentista ser iminentemente profano. Porém trata-se de um cupido sem venda, o que pode explicar e até justificar a falta de pudor em sujeitar todos os que entram nesse convento aos dardos ou setas dessa criaturazinha. Este amor não é cego e sabe bem o que faz. De igual modo surge no púlpito do refeitório do Convento duas crianças aladas inspiradas no modelo do Eros clássico – putti – uma com a aljava e outra com a tocha do Amor. De facto, muito segredo esconde a Arte Manuelina ainda nos dias de hoje.

O símbolo por excelência do nascimento espiritual é o ovo, elemento que encontramos logo após transpormos o pórtico. Os ovos alinhados numa fieira fecham a alegoria que se inicia na parte exterior com o cúpido. Estamos perante um novo homem – usando palavras de São Paulo - o homem que morreu para o mundo profano e que se inicia na religião que une (re-liga) como um Nó o domínio terrestre e o domínio celeste.


Mas não é esta alegoria exclusiva do Convento de Cristo pois podemos encontrar semelhante motivo no mosteiro dos Jerónimos, também este de lavra Manuelina. Tal é o Amor nesses monumentos que chegam a ser considerados poesia talhada em pedra.


Mosteiro dos Jerónimos – Os ovos entre os quais se intercalam as setas cupidianas
Impõe-se assim que a única chave hermenêutica que o poeta e os arquitectos do Manuelino consideram susceptíveis de nos permitir o acesso ao sentido da sua obra é o Amor. A compreensão real desse discurso amoroso que permeia todas estas obras só é possível a partir de uma real vivência ou potência do mesmo amor, que possa iluminar afectivamente um entendimento baseado na razão só por si impotente para abarcar o que o excede.

Já que anteriormente referi alegoricamente a ideia de “Nó”, e não foi ingenuamente, convirá atender ao seu significada sucintamente, já que se liga aos demais que temos vindo a referir, ocupando algumas vezes o lugar que o cúpido tem no Convento. É o caso do pórtico da Capela da Santíssima Trindade da Regaleira, tornando-se assim prova inequívoca do seu simbolismo sagrado, afastando a teoria que o remete para uma função de motivo ornamental puramente de significado marítimo.

Laço do Amor no arco do pórtico debaixo do Deus Pai que abençoa quem entra
Carece ainda hoje de plena explicação a profusão com que surgem na arquitectura Manuelina, mas a sua colocação em locais tão primorosos só podem levar à conclusão de que estão sob influência do sistema hermético do neoplatónico Marcílio Ficino, onde o Nó é concebido como reflexo do amor que garante a mediação entre os componentes universais: “amor nodus perpetus er copula mundi”, “o amor é nó e vínculo perpétuo do mundo”. O laço ou nó opera a ligação através do espírito, entre o corpo e a alma e simboliza o atingir da Graça Divina – não é esta o que a igreja pretende? – e atribui aos seus portadores ou que nela se embrulhem o título de Iniciados.

“Amor é fogo que arde que não se vê” mas também, sublinhe-se, que arde e não se extingue quando se refere a um amor na linha de Platão – amor divino – e prova dessa teimosia em não se consumir encontramos precisamente na Quinta da Anunciada Velha em Thomar. Passados séculos e apesar das vicissitudes do tempo desenterrou-se há poucos anos um prato no qual surge um peculiar Cúpido que vê, tal como o do Convento de Cristo. Portanto não expressará este o Amor cego ou o Cúpido que na idade média se associava a amores carnais e terrenos mas sim um amor divino e celestial que sabe bem o que faz. Aliás as inúmeras representações de Cupido (Eros) na arte helenística e romana nunca mostram o tema de venda cobrindo os olhos desse jovem alado.

De data incerta mas balizável entre o séc. 16/17, talvez obra da
Ordem de Cristo ou mesmo da Ordem dos Capuchos (?)
É tarefa ingrata tentar conciliar as diversas representações do cupido e será expor o assunto de forma ligeira se dissermos que o cupido com a venda, ou seja cego, seja a representação do amor sensual, e que a sua ausência significaria o amor divino ou o “amor que Deus ou os Deuses nos têm”. Todavia talvez nos sirva para os efeitos pretendidos. Sobre esta base podemos então ver o cupido do pórtico do convento como causador de um amor que só nos pode aproximar da divindade; não é este cego e só se faz portador de uma seta que tomaremos como sendo a de ouro, a que desperta ou inflama amores. Não é atípico vê-lo munido de duas setas, uma de ouro e a outra de chumbo, esta última antítese da primeira, ou seja, lançada para extinguir o amor ou eventualmente para despertar rancor ao amor, mas desta não se faz detentor.

Na ideia do proprietário esta representação do Cupido que vê, não obstante ser dotado de venda embora transparente e deixando transparecer os olhos, é prova inequívoca de que afinal não é o amor assim tão cego quanto às suas “diabruras” Contudo julgo que, e não desconsiderando tal opinião, ser uma alusão quanto ao tipo de amor que traz na ponta das suas flechas, ou seja, uma amor igual ao que encontramos no Convento e nos Jerónimos em Belém, um amor sagrado.

Iniciámo-nos deste modo no Amor com esta extensa introdução, o qual evoco para nos guiar ao longo dos posts seguintes, tal como Vénus e uma legião de Cúpidos guiou os Portugueses nos Lusíadas até à ilha dos Amores.
Edificação Manuelina na Quinta onde se verifica restos de Corda Manuelina


Notas de rodapé:
1. A ideia deste ensaio era debruçarmo-nos unicamente sobre o Cúpido da Quinta da Anunciada, até porque a análise iconográfica e interpretativa só por si dava para tecer substanciais considerações, mas como sempre acabámos por ser chamados pelo Convento e para não abusar na extensão do post, infelizmente, não lhe demos o destaque merecido. Requer este um debate mais profundo pois levanta alguma problemática a nível da interpretação visto ser uma mulher representada – os cabelos só por si denunciam essa intenção – e isso poder ser uma alusão directa ao amor sensual. Apesar de algumas vezes o Cúpido ser representado como do sexo feminino é mais usual vê-lo na figura de como uma criança, um andrógino ou mesmo um jovem adolescente, excepção de se faça à arte alemã onde possivelmente devido ao facto de as palavras “Liebe” e “Minne” serem ambas do género feminino, verifica-se uma forte tendência para personificar o Cúpido cego como uma mulher. Na Alemanha a figura da mulher nua conservou-se – com ou sem venda – em inúmeras representações tardo medievais do amor puramente sensual, representações essas semelhantes à que vemos no prato. A inclusão de um coração talvez reforce a ideia de um amor menos celestial do que enunciei no texto. Estas considerações levam-nos a pensar como poderíamos conciliar a existência desse prato no seio dos preceitos da Ordem dos Capuchos ou até dos da Ordem de Cristo. Contudo o tema do Cúpido cego foi também um tema moralizante, uma forma de mostrar que o Cúpido símbolo do amor sensual está nu e cego porque priva os homens das suas roupas, dos seus haveres, do seu bom senso e sensatez. Ainda numa mitografia moralizante podemos dizer que está cego porque cega as pessoas e leva-as a perder o discernimento guiando-se estas unicamente pela pura paixão. Deixaremos este debate para o evento na Quinta.
2. A influência de Marsilio Ficino (1433-1499) na história do pensamento ocidental é impressionante. Além de ter traduzido para o latim textos importantes da tradição neoplatônica, nomeadamente Platão, Ficino presidiu a Academia de Careggi, reunindo importantes humanistas no auge do Renascimento, tendo sido um protegido dos Medicis. Os seus tratados sobre amor, beleza, luz, magia e imortalidade da alma influenciaram marcantemente a produção de outros pensadores.

10/08/2009

NAS ENTRANHAS DO CONVENTO

Notícia do jornal "O Templário"



(clicar na imagem)
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NAS ENTRANHAS DO CONVENTO

A mística templária voltou a reunir este fim-de-semana em Tomar os leitores do http://blog.thomar.org/. Com um programa repartido por dois dias, contou com a presença de algumas dezenas de pessoas oriundas dos mais diversos pontos do país.

Fundado nos primórdios da nacionalidade e sujeito a uma prática quase ininterrupta de mais de 500 anos de construção onde não falta a presença de qualquer estilo arquitectónico, o Convento de Cristo é uma espécie de portal para o entendimento do sentimento Português. Mas quantas portas não foram ainda abertas? Quantos corredores não foram ainda percorridos? Quantas peças do puzzle da história de Portugal se escondem para lá dos percursos do Convento hoje visitáveis pelos turistas?
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Nas últimas décadas temos assistido à abertura de muitas zonas que durante anos estiveram vedadas por falta de reabilitação e segurança, ou mesmo por falta de recursos humanos. Todavia, o Convento de Cristo é um complexo militar medieval e conventual de considerável dimensão – nove claustros – que ainda hoje não permite a desocultação a todos os seus segredos. Desta feita, e por consideração ao interesse que o http://blog.thomar.org/ tem vindo a demonstrar pela história e património de Tomar, foi possível por meio do Excelentíssimo Rui Ferreira – do Convento de Cristo – conhecer o que se encontra por detrás de certas portas fechadas que intrigam qualquer visitante.

Se em eventos anteriores privilegiou-se a vista a locais ligados com a permanência da Ordem Templária no castelo, desta vez optou-se pela desejável visita aos espaços ocupados no séc. XIX pelo hospital militar. Construção de uma época tardia – séc. XVII – esta zona do Convento esconde vestígios Templários, talvez o único elemento pertencente à antiga muralha que açambarcava os aposentos da Ordem do Templo. No piso inferior do local atravessou-se um extenso corredor de dependências que ainda só à 40 anos foram postas a descoberto, findo o qual alcança-se uma porta, ligeiramente elevada em relação ao solo, e atrás da qual se esconde então os restos da muralha ou do um antigo Torreão Templário, que entretanto tinha ficado ocultado pela construção deste edifício.

A curiosidade em visitar a designada Sala dos Cavaleiros, situada numa das pontas deste antigo hospital Militar, anteriormente enfermarias do Convento, foi desta vez sanada. Curioso foi também saber que em tempos esta sala serviu de enfermaria onde era usual os enfermos, deitados nas suas camas, lançarem o seu calçado contra o belíssimo tecto de caixotão que maravilhou os visitantes e onde se inscrevia uma frase em latim não decifrada completamente.
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Mas se alguns “dão com os pés” no património e outros satisfazem-se pela visita aos sítios mais emblemáticos deste magnificente monumento, outros exigem ir mais longe, onde outros não se atrevem a ir. Poderíamos dizer em bom Português que fomos “mandados para a merda”. De facto foi o grupo levado às "entranhas" do Convento; visitou-se uma galeria semi-subterrânea, à qual se acede através de um escuro túnel descendente e que nos leva a um cenário cinematográfico digno de um Indiano Jones ou Lara Croft, não obstante ter este como função a recolha das necessidades dos monges conventuais em tempos idos. Desta sala com um pé direito elevadíssimo sai um outro túnel que atravessa toda a horta dos frades e encontra a luz do dia na Mata dos Sete Montes, onde serviria para efeitos de adubagem. Para demonstrar o quanto diverso é o grupo basta dizer que um dos seus elementos avançou de imediato com uma possível solução para a resolução dos problemas relacionados com os odores oriundos do túnel que ainda hoje, e por ter sido bloqueado incorrectamente à bastantes anos, esconde necessidades antigas libertando odores difíceis.
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Difícil é também o entendimento da torre D. Catarina, sobre a qual recai algumas das lendas que a tomam como entrada – ou saída – do mítico túnel que ligaria o Castelo à Igreja de Santa Maria dos Olivais. O amontoado de construções e as tentativas logradas no seio desta torre para se encontrar esse intrigante túnel, torna este local ainda hoje indecifrável em termos de funções que teria desempenhado no passado. Não obstante o Rui Ferreira dar argumentos que de certa forma tornam a ideia de uma passagem secreta nesta torre um tanto ao pouco inverosímil, foi este local um dos pontos altos da visita pela aura de mistério que o rodeia.
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Muitas aventuras mais se viveram, não fosse o cartaz do programa do evento ter anunciado à meia-noite uma Grande Aventura Templária. Após o jantar de confraternização – já o nono – o grupo reviveu o ataque que esta cidade sofreu em 1190 da parte do Ya'qub al-Mansur com os seus 400 mil cavaleiros, e ao qual resistiu o “duro” Gualdim Pães. Segredos, confissões, batalhas e recompensas fizeram deste jogo uma arrebatadora aventura onde não faltou que um Quiz Show que testou os conhecimentos dos elementos do grupo, e no qual se inseriu alguns jogos tradicionais Portugueses, e como não poderia deixar de ser nesta cidade mágica de Tomar, tudo muito regado com magias e maldições.
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No dia seguinte rumou o grupo para a Vila de Dornes, onde se encontra uma Torre Templária, quiçá, talvez de tempos ainda mais recuados. Foi o grupo surpreendido pelo o acolhimento que teve pela senhora responsável pela igreja adossada à torre.
Desvendou-se o ouro que os habitantes de Dornes encobriram com uma pintura apressada do órgão – era este forrado com folha de ouro - em virtude das invasões francesas e que apenas à dez anos se voltou a descobrir quando do restauro desse órgão que tem trazido a esta vila gente de vários locais da Europa para nele tocarem.

O blog reúne informalmente um grupo de pessoas que tem vindo a crescer e como tal, espera num próximo evento instalar-se na Quinta da Anunciada Velha, como forma de promover o convívio entre os participantes, não fosse este uma antiga possessão da Ordem de Cristo. “Esta é a minha praia”, assim se referia um dos participantes no fim do encontro sobre o que tinha encontrado no seio deste grupo e evento. De facto são muitos os “marinheiros” que tem vindo desaguar ao Mouchão e que têm repetido a presença nos eventos. Que as águas Santas ou as atormentadas águas do Adamastor tragam mais navegadores a estes eventos, é o desejo do Blog. E que juntos embarquem na defesa, promoção e valorização do património de Tomar. Um bem-haja a todos.
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