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6/18/2010

A SAGA DE SÃO CRISTÓVÃO - PARTE IV

Uma estátua de fazer perder a cabeça
CET – Centro de Estudos de Thomar
Do Círculo: “(C)ristóvão (E)m (T)omar”
Deve este post ser lido como continuação do post "São Cristóvão da Ponte (parte III)". Anunciámos que iríamos publicar um post a propósito de uma descoberta feita pelo Voltron após ter lido o post citado, todavia não é este ainda. A constituição do Círculo em causa teve como objectivo a publicão de dois posts. Este é o primeiro. 

“De facto é estranho que essa estátua seja de São Cristóvão. Corri milhares de páginas à procura de informação e encontrei uma descrição como sendo um soldado romano, o que parece corroborar o meu sentimento quanto à origem dessa figura”                                 Leon

Surpreendentemente não tem sido apenas a pintura mural da Charola a fazer correr muita tinta, ou no caso da Leon, a correr por entre milhares de páginas na tentativa de entender a estátua apontada como sendo a de “São Cristóvão da Ponte Velha” ou de “D. Manuel”. “Da Ponte” será, e disso já não nos restam dúvidas, todavia de uma outra. Quanto a ser São Cristóvão, parece haver algum tipo de equívoco que já vem de longa data.

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Estátua do Claustro da Lavagem

O alerta foi dado pela Leon que se lembrou de ir consultar os trabalhos da Salette da Ponte, visto esta ser uma das referências na arqueologia Tomarense, poderia fornecer-nos algum tipo de descrição ou informação quanto à estátua que está no Claustro da Lavagem, do lado direito de quem entra pela porta de acesso virada para a Almedina. Confirma-se, e mesmo sem saber se a descrição é da Salette, passamos a citar a legenda da fotografia da estátua.

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E São Cristóvão? Nenhuma palavra quanto a isso. Adensa-se o mistério, até porque inequivocamente é identificada como sendo de uma época anterior à da própria Lenda de São Cristóvão. Mais, foi encontrada algures junto à muralha Sebástica.

A ideia não seria que tendo estado ela na ponte a partir no tempo de D. João V se tinha entretanto retirado por incapacidade de se aguentar nas pernas? Como terá então ido parar tão longe do sítio onde conviveu com o povo Tomarense? E que local é este a que chamam Sebástico?

Após esta constatação a Leon ligou-me e noticiou-me as boas novas. Seriam-no mesmo? Sim, mas foram a causa de andarmos de cabeça perdida nos dias que se seguiram.

Começa então aqui, a história que nos foi possível recolher junto aos meios a que tivemos acesso. História esta, que ainda carece de algumas respostas mas que julgamos vir esclarecer parte da biografia do homem sem cabeça.

Comecemos então por dar conhecimento acerca da localização da designada muralha Sebástica que, como o nome indica, foi construída na época que antecedeu a batalha de Alcácer Quibir.

A Estrada Velha, conhecida como Coimbrã ou Santarena, e que estabelecia uma das ligações de Santarém a Penela, passava pelo local onde hoje é São Lourenço, começando aí a “costear” o Monte do Piolhinho (termo de Tomar), baixando então ao nível da Ponte das Ferrarias. Na época tinha esta zona uma cota muito inferior à que hoje conhecemos, estando portanto, sujeita a constantes e repetidas inundações do Nabão, o que a tornava intransitável no Inverno. Existia porém, um desvio susceptível de ser usado em alternativa, mas era penoso e até perigoso.

A muralha era assim uma necessidade premente a fim de resolver os incómodos causados pelas cheias inerentes à época da chuva. Mandou-se assim, na época do reinado do jovem Rei, construir uma forte muralha na margem do rio, que contivesse o rio e servisse de amparo ao aterro de sustentação às terras que permitiram nivelar a estrada. Ainda hoje é possível ver essa muralha cumprindo as funções para que foi construída, assim como o padrão que se elevou para comemorar essa grandiosa obra de aterro, o Padrão Sebástico.

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Padrão de D. Sebastião

Tivemos a oportunidade de referir que a estátua se relacionaria, de facto, com uma ponte, mas não dissemos eventualmente com que ponte. Debrucemo-nos então um pouco sobre essa outra ponte: a das Ferrarias.

Pelo que nos foi dado a conhecer, terá sido descoberta em época relativamente recente pelo ilustre João Maria de Sousa, que a ela se refere nas suas divagações literárias.

Não se lhe conhece a origem, talvez romana, nem até que época terá cumprido com a sua função, mas certo, é ter servido de açude – tal como actualmente – pelo menos desde o século XVI, altura em que, aproveitando um pequeno rápido onde, junto ao Monte do Piolhinho, ao fundo da Várzea Grande, existe um estrangulamento do rio e se fez uma fábrica de armas a mando de D. Manuel I. Pouco se conhece da sua tipologia, a não ser uma levada aberta a meio da ponte.

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Ponte das Ferrarias em Tomar perto do
Padrão de D. Sebastião
Prospecção no local

Encontrava-se precisamente na sua proximidade, a estátua que hoje vemos no Claustro Da Lavagem. Diz-nos a Carta Arqueológica do Concelho “que ali perto se encontrava em 1903, a estátua conhecida por S. Cristóvão. Ainda em 1927 Vieira Guimarães ali a viu. Actualmente, encontra-se no claustro da lavagem do Convento de Cristo”.

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Estátua do Claustro da Lavagem junto
à muralha Sebástica em Tomar

Acontece porém que, em 1903 – data em que J. M. Sousa noticia o facto – o mesmo não refere, tratar-se aquela estátua da representação de São Cristóvão, e de igual modo, também Vieira Guimarães, que talvez seja o único, ou o que mais cedo dá notícias da estátua do Santo na Ponte Velha ou de D. Manuel, não se refere à estátua que está no Claustro da Lavagem como sendo a de São Cristóvão ou que tivesse estado na ponte da cidade. Sabiam ambos – até porque a conheceram junto às Ferrarias – ser aquela estátua de origem incerta e duvidosa, mas nunca como a que esteve na ponte junto a Santa Iria.

É certo que não encontramos muitos escritos que afirmem ser esta estátua a do São Cristóvão que estava na Ponte Velha da cidade, mas é comummente assente – pelo menos entre as diversas pessoas com quem contactámos – ser aquela estátua a do famoso santo de pernas gastas e que se encontrava “voltado a sul. Logo à entrada, vindo do Além Ponte”. Esta citação do Amorim Rosa, apesar de dar notícias do Santo da ponte, não chega a identificar que estátua era essa – se a do convento ou não – e remete-nos imediatamente para J. M. Sousa e Vieira Guimarães que terão sido, sem dúvida, as suas fontes de informação.

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Ponte D. Manuel I (Velha ou da Cidade)

Portanto, independentemente de ser esta confusão da nossa autoria e de mais uns quantos escritos que encontramos na internet – e não só – serve este post para definitivamente – se o for – entender mais um pouco da biografia do homem da muralha Sebástica, de cuja origem mais recuada acabamos por saber tão pouco, tal como quanto ao final dos dias do nosso Rei, que àquele local dá nome.

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El Rei D. Sebastião

Abordemos então as notícias que obtivemos do Vieira Guimarães e João Maria de Sousa, os quais são a fonte mais credível para entender esta saga que já vai no quarto capítulo e nos levou mesmo à criação de um círculo do nosso CET - Centro de Estudos de Thomar, curiosamente designado como (C)ristóvão (E)m (T)omar, do qual iremos ainda publicar mais um post deveras interessante a nosso ver.

O local referido serviu de palco ao encontro entre as tropas do Santo Condestável e D. João I em 10 de Agosto de 1385 – dia de São Lourenço – as quais devem ter usado a ponte das Ferrarias “para dar passagem aos peões e cavaleiros a vau, porque devia o rio ser vadeavel naquela época e ainda no principio do séc. XIX em certas épocas do ano”, no entendimento do J. M. Sousa .Segundo Vieira Guimarães, no séc. XIV ainda estava apta a dar passagem a crer na Crónica de El-Rei D. João I, facto que não conseguimos apurar em virtude do livro ser extenso e de leitura difícil.

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Note-se em plano de fundo, à direita, a ponte
por onde as tropas teriam passado
Painel de Azulejos na Capela de São Lourenço com representação
das tropas de D. João I e do Condestável

No “Portugal Antigo e Moderno”, diz Pinho Leal, ter havido naquele local uma fábrica de fundição de ferro – de armas como já referido – pertencente a Henrique de Quental, e portanto, haveria a possibilidade de ter sido este o mentor de tal ponte e da estátua dele próprio que, naquele tempo (sec. XIX) ainda lá se encontrava, embora já decapitada.

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Portugal Moderno e Antigo de Pinho Leal

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Antiga casa de Aires de Quental em Tomar

Discorda veementemente J. M. Sousa que assim seja, quer no que diz respeito à estátua ser do próprio, quer da construção da ponte servir a sua fábrica. Diz-nos antes que, eventualmente, Henrique de Quental pode tê-la restaurado, mas nunca construído, pois a seu ver a ponte seria bem anterior à nacionalidade Portuguesa. 

Diz-nos João Maria Sousa que “a estátua mutilada, que ainda hoje se vê, e que se diz ser de Henrique do Quental, não ocupou primitivamente o logar, onde agora se encontra. O leito do rio elevou-se, devido principalmente aos açudes que os frades nelle mandaram construir…”. “ Portanto, se Henrique do Quental mandou, não diremos construir, mas reparar aquella ponte para serventia da sua fábrica de fundição, foi muito antes da construção da muralha; é pois natural que a estátua estivesse em baixo na margem do rio à entrada da ponte e, quando fizeram aquella muralha, a removeram dali e collocaram sobre ella no lugar onde hoje está”

Por outro lado, se tivermos dúvidas relativamente ao pensamento do Vieira Guimarães quanto àquela estátua podemos dissipá-las através da leitura da seguinte passagem de sua autoria “…para o diferenciar do outro (padrão) que está colocado antes do topo sul da muralha (aqui levanta-se os restos de uma estátua que damos em gravura, mas cuja representação ignoramos) o qual …”. A foto que apresentamos é precisamente essa que ele nos deu a conhecer.

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E como tudo isto foi a propósito do São Cristóvão, vamos terminar com as palavras de Vieira Guimarães sobre a estátua que estaria, em tempo idos, na ponte D. Manuel I:“ Sem dúvida que no tempo em que isto se escrevia – referia-se a uma descrição sobre a ponte D. Manuel I -, principio do séc. XVIII, não existia neste sítio e no mesmo lado, um corpulento S. Cristóvão, o advogado das pontes, cuja estátua não chegámos a conhecer – conhecia a outra sem dúvida - mas que pessoas ainda hoje vivas em Thomar se lembram dela e duma crendice que lhe andava ligada: o pó raspado das suas pernas servia, depois de tomado, para a cura das maleitas ou para abrir o apetite. Naturalmente tanto rasparam que algum pé-de-vento o deitou abaixo e provavelmente para o lado do rio, estando no fundo do pego que é ainda dos nossos dias e que camadas sucessivas têm vindo a entulhar. No reinado de D. João V a estrada a que esta ponte dava passagem, foi concertada e as suas pontes restauradas, o que nos leva a crer este S. Cristóvão viesse dessa ocasião pelo que também nos é testemunhado por aquelas pessoas. A sua figura, já lendariamente conhecida, opulenta de formas e a sua flutuante roupagem muito nos faria lembrar as celebres estátuas do grande escultor e arquitecto Bernini que no século anterior, em Roma, tinha prodigalizado o seu infatigável talento em obras admiráveis, como a Santa Teresa…”

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Santa Teresa de Bernini

Portanto, podemos então concluir que no passado, a estátua que se encontra hoje no Claustro da Lavagem, não era tida como sendo a de São Cristóvão que outrora teria estado na Ponte Velha, visto qualquer um deles – Vieira, J. M. Sousa e Pinho Leal – terem conhecido essa estátua junto à Ponte das Ferrarias. Contudo, pode pensar-se que a estátua de São Cristóvão teria sido deslocada em época anterior, para esta sua nova localização, no entanto, parece-nos pouco credível que assim fosse até porque Vieira Guimarães terá tido contacto com Tomarenses que ainda a recordavam. Sendo assim, e caso a estátua fosse a mesma, teria decerto sido esta, da muralha Sebástica, identificada como tal.

De facto, a estátua apresenta dois aspectos que, curiosamente, podem inspirar-nos a pensar tratar-se de São Cristóvão; são eles, os pés inacabados - que podem levar a pensar ter sido intencional na perspectiva de o representar como tendo os pés dentro de água - e a “mutilação” no ombro - que poderia ser o apoio ou sustento de uma outra parte, justamente o menino Jesus. Todavia, os factos apresentados ao longo deste ensaio e as vestes atípicas – de Romano e não de S. Cristóvão Latino – talvez nos levem a concluir que o São Cristóvão se perdeu para sempre não tendo deixado rasto. Quem sabe se não estará à espera de ser descoberto por debaixo das areias do rio Nabão, a fazer fé no que nos conta Vieira Guimarães.

“Quase que sinto a presença da estátua aqui no seu local original. Isto é lindo. Sou da opinião que não devíamos publicar foto para não perturbar o “Génio” do Local”.  Assim seja.                                                   Voltron

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Os Cinco


ADENDA
São diversas as informações que excluímos mas incluí-se, em nota de rodapé, alguma dessa informação considerada de interesse para quem queira estudar com maior profundidade o tema:

- A Ponte das Ferrarias pode ter sido conhecida como “Dorso de Burro”, alem de “Olarias” como já referido, depreendo-se essa designação em virtude da sua forma. Decerto teria dois arcos de grande flecha e um (ou dois) pequenos arcos, como podem ter verificado nas fotos apresentadas.

- Num Auto de Diligência de 1530 que procura apurar a navegabilidade do Rio de Tomar, encontramos referências à ponte, sem contudo ser referida a estátua. Podemos nesse documento constatar que, já naquele tempo, a ponte estava em ruínas, visto não selhe dirigirem como ponte mas sim como açude. (podemos fornecer o documento integral por e-mail).

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Um agradecimento especial à Amarna pela revisão final do texto e a quem de uma forma ou outra nos esclareceram algumas dúvidas.

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CET – Círculo “Cristóvão Em Tomar”
C:Voltron,
E: Degraconis, Leon, Cluny