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2/23/2011

A MARCA DE GUALDIM PAIS - PARTE II

E os Misteriosos Subterrâneos
Autoria: CETHOMAR
(Degraconis)

 A MARCA DE GUALDIM PAIS
(Segunda parte)

Hoje apercebo-me que Deus não se preocupa com os defeitos e os erros dos homens. Os homens são homens, é assim que é suposto comportarem-se. O que interessa a Deus pode ser uma única acção em que um homem, superando a sua condição, toca a divindade. É esse o agente da transformação: uma acção.

Eu e Gualdim chegámos a Lisboa depois de termos saído de Tomar e passado umas semanas em Almourol a supervisionar a construção de uns túneis. Era o final do verão e quando entrámos nas muralhas era final de tarde: dois finais que se uniram para cobrir a cidade com um manto de luz dourada que atingiu o seu auge no momento em que o sol estava para cruzar o horizonte. O nosso objectivo era a igreja de Santa Maria Maior e depois de termos deixado os nossos cavalos nas cavalariças do castelo entrámos fazendo o sinal da cruz e murmurando uma curta prece ao Senhor. Não estávamos sózinhos, a ocasião era especial e fomos recebidos, com toda a reverência que Gualdim exigia, pelo deão da igreja D. Roberto e pelo cavaleiro D. Gonçalo Viegas. Gualdim perguntou se já tinha chegado e, visivelmente emocionado, D. Roberto disse que sim, que tinha chegado aquela manhã, que estava na capela contígua. Dirigimo-nos até ao local e foi então que vimos os restos do corpo do mártir São Vicente cuidadosamente colocados em cima de uma mesa. Caímos de joelhos aos pés do mártir cujas histórias contavam de milagres diversos e não menos extraordinários do que aqueles do Nosso Senhor Jesus Cristo. Confesso que a emoção tomou conta de nós. Aos pés do Santo confessámos os nossos pecados, pedimos perdão e um lugar no céu, local do eterno descanso após as provações da vida terrena.

Naquela noite abrimos as portas da igreja aos devotos para mostrar São Vicente à cidade. Foi rezada uma missa em nome do santo, uma espécie de boas vindas para aquele que a partir daquele momento iria ser o protector da cidade. Lisboa compareceu em massa, muitas foram as pessoas que ficaram fora da igreja à espera de poder entrar para ver e tocar no santo. Coxos, paralíticos, zarolhos, manetas, cegos, mudos, surdos, gagos, doentes e miseráveis de toda a espécie entraram na capela, alguns pelos braços de familiares e amigos, outros sózinhos. Eu e outros estávamos na capela na vígilia do corpo, o Bispo abençoava com água benta aqueles que iam entrando. Naquele momento Gualdim percorria os subterrâneos e as passagens internas da igreja que tanto o intrigavam e que, segundo contava a lenda, precediam a igreja e estendiam-se nas profundezas da terra.

Ao fim da noite, quando a capela estava para ser encerrada e as ultimas pessoas entravam na esperança de serem abençoadas pelo santo, estava à porta um homem que não queriam deixar entrar. Corriam umas vozes que era um possesso, outras diziam que era um impostor, mas havia o medo geral que este homem tivesse intenção de danejar o corpo. Discutimos entre nós mas foi Gualdim quem interviu, vindo das catacumbas, e defendeu que o homem devia ter o direito, como todos os outros, a estar na presença do santo. Não havia como contradizê-lo, todos aqueles que conheciam a reputação de Gualdim sabiam que seria melhor ficarem calados e assim o fizeram.

O homem não era velho mas também não era novo. Caminhava lentamente tremendo e arrastando as pernas e ao entrar na igreja tirou o capuz que lhe cobria a cabeça e fez o sinal da cruz ajoelhando-te e beijando o chão de pedra. Ajudámo-lo a levantar-se e acompanhámo-lo até ao corpo. E por duas vezes caiu no caminho e por duas vezes colocámo-lo de pé segurando-o com força para que não caísse enquanto soltava gritos que ecoaram pelas paredes e pelos nichos da igreja levando os devotos ainda presentes a fazerem o sinal de santa cruz procurando com ele afastar o diabo. Olhámos uns para os outros e murmurámos preces pedindo protecção ao Cristo redentor. E foi perante o corpo do santo que o homem caiu pela terceira vez e se deixou ficar no chão a tremer no mais feroz de todos os seus ataques. O bispo ordenou que todos se afastassem e que ninguém lhe tocasse pois o diabo poderia passar para um de nós e assim o fizemos, com alívio é verdade, porque ninguém queria qualquer contacto com aquele miserável. O homem continuou a contorcer-se no chão. No auge do seu ataque começou a engolir a própria língua, parecia que ia sufocar. Alguém gritou que alguma alma piedosa o ajudasse mas o bispo avisou que apenas Deus o poderia salvar, que ninguém se deveria aproximar. E foi então que Gualdim apareceu e empurrou o padre e todos aqueles que se estavam entre ele e o homem e, ajoelhando-se, meteu-lhe a mão na boca e desembrulhou-lhe a língua. Em seguida colocou a sua cabeça entre os seus braços, todo o corpo do homem ainda tremia, e foi então que lhe começou a segredar alguma coisa ao ouvido.

Durante muito tempo muitas das pessoas que estavam presentes ali naquela noite disseram que ouviram Gualdim dizer isto ou aquilo. É mentira. Eu era uma das pessoas mais próximas dos dois homens naquela noite e posso assegurar que não se ouviu mais do um ténue murmúrio imperceptível.

O que se passou a seguir foi falado e repetido pelas sete colinas de Lisboa nos dias e nas semanas seguintes.

O homem parou de tremer e, levantando a cabeça, olhou em redor para todos os que olhavam para ele e perguntou o que se tinha passado. Foi então que alguém gritou milagre e outras vozes seguiram a primeira. O homem levantou-se e depois dele Gualdim para o qual todos olharam com uma expressão de assombro. O homem começou a caminhar e todos se afastaram para o deixar passar e depois Gualdim, a quem muitos chamavam de milagreiro e de santo. Alguém se aproximou dele e perguntou-lhe o que tinha ele dito mas Gualdim recusou-se a responder. Muito dias depois também eu haveria de tentar a minha sorte mas sem qualquer sucesso. O homem possesso afirmou não se lembrar de nada, nem sequer de ter entrado na Sé.

(Texto: Velho do Restelo - Investigação histórica: Degraconis)

(continua)
Parte III

2 comentários:

RUI GONÇALVES disse...

Faleceram-me dois familiares dai não ter publicado o texto conforme havia prometido. Aqui fica. Tem continuação em mais duas parte e depois o post propriamente dito.

Anónimo disse...

Excelente tributo ao fundador de Tomar.
Os meus parabens.
Estão todos convidados para a tasca do Aurélio.
A primeira rodada é minha.
As ganzas levam voces!

Antonio