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3/20/2009

TOMAR O INFERNO (Parte II)

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Trata-se da mais antiga representação autónoma do Inferno na pintura portuguesa. Obra misteriosa e inquietante. A pintura só está documentada a partir de meados do século XIX, no acervo da Academia de Belas Artes de Lisboa proveniente da extinção dos conventos de frades, em 1834.

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A DESCIDA
( as referências mitológicas abaixo referidas são todas de livros editados pela Gulbenkian, e de autores internacionais e nacionais reconhecidos. )

A religião grega, enquanto religião da pólis, é uma religião eminentemente pública, da qual ninguém se podia excluir. Procissões, banquetes, preces, oferendas, eram o veículo dessa manifestação popular. Todavia a par dessa religião oficial sempre existiram cultos secretos, acessíveis únicamente por via de uma iniciação individual especial, os “mistérios”. Muito se tem escrito sobre este mistérios, mas não passam de especulações, a saber que, como religião reservada a eleitos e aos quais era obrigatório o silencio absoluto, pouco sabemos.

O secretismo era radical, porém permaneceu em aberto se nos mistérios o sagrado era proibido ou simplesmente inexprimível. Os Mistérios Eleusínios ou Mistérios de Deméter eram as maiores e mais solenes festas de todo o mundo grego. Os deuses dos mistérios são Deméter e Dionísio (a romã surge do sangue de Díonisio após os titãs o terem dilacerado e devorado). Ingerir a bebida de cevada ou beber vinho são actos que desempenham um papel crucial na encenação mistérica. Pode supôr-se uma suposta base neolítica nos mistérios, com raízes em cultos agrários antiquissimos e também em aspectos de cariz sexual que o homem pré-histórico tem vindo desde sempre a cultuar, dos quais os dois deuses referidos são personificações.

Os autores pagãos nunca foram além de alusões circunstânciais, e os cristãos que se esforçaram por arrancar o véu ao mistério raramente apresentaram mais do que vagas suspeitas. Por sorte, houve um escritor gnóstico que revelou alguns pormenores sobre Elêusis.

Por agora e a interesse do assunto que é a razão deste ensaio, debruçemo-nos únicamente sobre Deméter e a sua filha Prosérpina, personagens chave para este segundo nível de entendimento do quadro A Morte da Virgem.
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ssssssssssssssA Morte da Virgem de Cristovão de Figueiredo - O quadro em análise

sssssssssssssssssssDetalhes dos quadros portugueses da Morte da Virgem
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OS DEUSES
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sssssssssssssssssssssssssssssss ss Deméter (Ceres) na Regaleira

Deméter significa mãe, mas a determinação exacta desta “mãe” permanece um mistério. A interpretação muito difundida na antiguidade, e frequentemente ressucitada, é a de “mãe-terra”, apesar de haver muitas reservas no assunto ainda, mesmo conhecendo –se todas as suas ligações ao mundo subterrâneo. Apesar do ponto de vista linguístico não ser consensual, a expressão “mãe dos cereias” é comumente aceite. O camponês envia preces ao “Zeus Ctónico” – Hades – e a Deméter, pois é ela que lhe enche o celeiro. Aliás, o nome romano de Deméter é Ceres, do qual deriva o termo cereais.

A sua filha Prosérpina, também evocada pelo seu nome enigmático Perséfone, está intimamente ligada a Deméter, de tal modo que com frequência se fala simplesmente das “duas deusas” ou ainda das “Deméteres”, no plural.

Prosérpina vivia feliz, junto de sua mãe, sem pensar no casamento, mas o seu tio Hades (Deus dos mortos e do Inferno) apaixonou-se por ela, e um dia quando esta colhia flores a terra abriu-se e Hades surgiu arrebatando-a para as profundezas infernais. Este episódio é conhecido como o rapto de Perséfone (ou Prosérpina).

Enquanto Prosérpina está desaparecida, Deméter sua mãe ostenta luto e abstrai-se das suas funções divinas de protectora da agricultura. Os bois puxam o arado em vão, os grãos de cereais são lançados à terra inútilmente, nada germina nem cresce, a ordem do mundo foi alterada e a fome ameaça os mortais. De forma a consolar Deméter, Hermes solicita a Hades que a liberte, contudo Prosérpina tinha quebrado uma das rigidas leis do mundo inferior, o que a condenava a não poder voltar ao mundo dos vivos.

A muito custo conseguiu Hermes obter autorização de Hades para que a Deusa permanecesse apenas um três meses por ano no mundo dos mortos, findo o qual podia regressar ao mundo dos mortais, para depois voltar novamente e assim por diante. Desde a antiguidade que se entendia este mito como uma peça evidente de alegoria natural. Prosérpina era o grão que tem de ser colocado debaixo da terra para, depois da sua morte aparente, poderem germinar novos frutos. Este despontar é o regresso, o retorno da benção dos cereias durante o ano, quando brotam na terra as plantas da Primavera. A sua ausência os três meses de Inverno.

Mas que regra inflexível era essa que a condenava aos infernos? Ingerir alimento. Foi seduzida por uma romã, da qual comeu algumas bagas. Portanto, e deste ponto de vista, o mito de Proserpina confere à romã ainda outro simbolismo cristão: refere-se à morte e ressureição, além dos abordados anteriormente.

ssssssssssssssssssss ssssssssssPerséfone (Prosérpina) com a romã

Repare-se que até ao século IV nada se sabia sobre a morte da Virgem, ignorava-se o local da morte e a idade com que morrera. Não existam relíquias de Nossa Senhora, e isso só poderia indicar que teria ascendido aos céus como o foi seu filho. Era inconcebível que o corpo que deu a nascer o salvador pudesse ter servido de alimento aos germes da terra, era a Virgem concebida sem pecado e como tal não poderia ter outro destino que não o mesmo que o de seu filho, até porque no antigo testamento não são poucos os testemunhos de patriarcas e profetas que ascenderam aos céu escapando à morte. Seria a Virgem, a mãe de Deus, menos que todos esses santos?

É de julgar que à falta de tradição apostólica sobre o tema e para estabelecer conformidade com a doutrina crista das escrituras, os evangelhos apócrifos procuraram inspiração no ciclo da morte e glorificação de Cristo. À semelhança do que aconteceu com o seu filho, a Virgem permanece no sepulcro durante três dias e no Domingo o seu corpo é arrebatado aos céus onde se encontra com o seu espírito. Com efeito também a Virgem ressuscitou. Em todos livros de iconografia é o quadro de Boticelli, onde a romã é segura nas mãos de Cristo e da Virgem – ver acima – visto como uma alusão à ressurreição de Cristo e à castidade da Virgem, porém esquecem-se que ambos ressuscitaram.

No quadro em questão a Virgem está prestes a deixar o mundo dos vivos, e num contexto mitológico, está às portas do reino de Hades, não obstante estar garantida a sua ressurreição. Deste ponto de vista, e em conformidade com antiguidade clássica, apresentar-se-á em breve ao casal Prosérpina e Hades.

Terá a Virgem que fazer a travessia do rio para que se apresente à deusa em questão, da qual a romã é o símbolo mais conhecido. Caronte, é o barqueiro responsável pelo transporte dos defuntos, ao qual se paga com uma moeda – óbolo - que devia ser colocada na boca do defunto.


Curiosamente encontramos umas quantas moedas na mesa que suporta os motivos que temos vindo analisando. Será uma alusão velada a esta referência mitológica? A análise das moedas constantes no quadro permite identificar o período do quadro – D. João III – mas, e apesar de obscuro os dados biográficos do pintor Cristóvão de Figueiredo, tais datas seriam fáceis de identificar.

Não encontrei informação que justificassem a sua inclusão na pintura, e à falta desta, numa lógica dedutiva a partir da romã de Prosérpina, presumi que fosse um reforço da ideia que ora se vem desenhando. Não se encontra na pintura uma moeda, mas várias, tal devia ser o valor do defunto a transportar, não era a virgem um comum mortal, mas sim uma das maiores riquezas dos tesouros do cristianismo. O facto de tratarem-se de umas quantas pode também ser uma forma de não aludir directamente a Caronte, dissimulando-se a intenção, até porque em tempos medievais, e veja-se os sepultamentos encontrados em Santa Maria, era ainda comum essa prática. Religião popular que nem sempre estava de acordo com a oficial, mas tolerada.

Após já ter esta ideia relativamente ao papel das moedas, no verão tive oportunidade no Museu do Prado adquirir uma das obras mais citadas nestes temas – Iconografia del Arte Cristiano – onde procurei saber se não seria comum esta referência a Caronte. Eis que numa singela nota de rodapé: “ En ciertas pinturas franco flamencas y alemanas, se advierte un curioso detalle iconográfico: hay una moeda pegada al círio mortuorio. Es possible que se trate del óbolo de la barca de Caronte, barquero de los muertos”. Portugal esquecido? Quanta falta de pudor tinham os nossos artistas. Seria o espírito ecuménico e sincrético da Ordem de Cristo a permitir tanta heterodoxia? Consegui uma dessas pinturas e aqui fica para vossa apreciação. (o livro citado são cinco volumes não editados em Portugal).

ssssssssssssssssssss sssssssssss ssssssssA moeda no círio

Na obra “Arte y Mito – Manual de Iconografia Clásica (pag. 591)” do prof. Catedrático Miguel Ángel E. Barba, ex-director do Museu Arqueológico Nacional de Madrid, refere este julgar ser só na época moderna (1877) a romã representada na mão de Prosérpina, quando aparentemente devia ser um elemento bastante lógico e provável de exploração nas artes plásticas, tendo só isso se verificado na literatura. Pelos visto em Portugal já o tínhamos utilizado trezentos anos na pintura.

Os símbolos tem que ser contextualizados, variados são os seus significados e às vezes até contraditórios, a romã é um fruto funerário e deve ser com esse sentido que alcança lugar no cenário da morte da Virgem nas pinturas portuguesas, apesar de os seus significados mais conhecidos serem outros. No tempo dos romanos dizia-se ser a comida dos mortos, e no Egipto foram encontradas flores de romã nos sarcófagos.

Podem estar neste momento horrorizados com a ideia de estar associar-se ao santíssimo vulto da Virgem, noções heréticas de personagens conectadas com o inferno. Como pode a Virgem ter por destino mundos infernais? Impõem então clarificar as noções do além e da sua cartografia nos domínios da antiguidade clássica.

INFERNO E PARAÍSO

O Nome Hades pode levar a confusão, porque era usado pelos antigos gregos tanto para o deus que mandava no Mundo Inferior como para o próprio Mundo Inferior. Embora fosse o reino dos Mortos, o Hades grego não se parecia com a idéia posterior de inferno, um sítio onde os condenados sofriam penas eternas. Era um lugar para onde todos os mortos – bons ou maus – seguiam, guiados pelo deus mensageiro Hermes que conduzia então a sombra do morto para longe dos parentes em lágrimas (romã cristã), cada vez mais para baixo, até a entrada do Hades. Só quando lá chegavam era decidida a sua sorte.

sss sssssssssssO reino de Hades onde se vê Hades com a sua consorte Prosérpina
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Depois de serem julgadas, as sombras eram levadas por três caminhos. Um desses caminhos conduzia aos Campos Elísios, onde só chegavam os grandes heróis ou aqueles que tinham agradado aos deuses com sacrifícios ou um trabalho realizado à custa da própria vida.

Ali brilhava o Sol e as poucas nuvens no céu eram brancas e leves. Cantavam os pássaros por entre as árvores, principalmente nos ramos de um alto álamo que fora em tempos a filha do deus Oceano. As clareiras estavam sempre cheias do som de alegres músicas tocadas por flautas e liras, e havia sempre danças. Aqui nunca havia noite, porque as sombras não precisavam descansar. Faziam-se banquetes sempre que havia ocasião. O vinho corria em cascata, mas ninguém lhe sofria os efeitos, porque era impossível beber demais. Grandes salvas de uvas e romãs eram servidas no fim de cada banquete. Estes gozavam de um privilégio: podiam, se quisessem, voltar à Terra.

Portanto, na mitologia grega, os Campos Elísios é o paraíso com uma descrição semelhante ao céu dos cristãos e muçulmanos. Neste lugar só entram as almas dos heróis, santos, sacerdotes, poetas e deuses. É no seio deste contexto que temos que interpretar a alegoria contida no quadro. À semelhança de todos os defuntos a Virgem teria que passar por esse mundo, alías o próprio Cristo desceu a mundos iguais após a sua morte, antes de ascender ao céu, ou seja aos Campos Elísios.

Mas podemos ir ainda mais longe nestas intenções secretas.

Na mitologia grega, Hades é o deus do submundo e das riquezas dos mortos, preside as riquezas agrícolas . É ele quem faz as sementes se desenvolverem depois de plantadas no solo e é quem dá a produtividade e a abundância nos campos. É o deus das riquezas e dos tesouros escondidos debaixo dos nossos pés, nomeadamente os auríferos como seja o ouro.

Contudes, Hades era tão temido que ninguém ousava pronunciar seu nome, e quando era para se referir a ele, usavam outras definições. Por bastante tempo, o apelido Plutão substituiu o verdadeiro nome de Hades, dando origem ao deus romano com esse mesmo nome. Como divindade agrícola, eram-lhe consagrados o narciso e o cipreste (cemitérios) e seu nome estava ligado a Deméter (Ceres) e junto com ela era celebrado nos Mistérios de Êleusis que eram os ritos comemorativos da fertilidade, das colheitas e das estações.

Plutão significa “o rico”, “riqueza”. E que símbolo por excelência representa riqueza? Moedas!!! Quantas moedas de ouro não estão no quadro. Além da atribução das moedas a Caronte, poderemos encontrar ali uma referência a Plutão (Hades)? As moedas chegam para os dois. Teremos então o panteão dos Deuses que presidem esses mundos e para o qual o defundo se dirige, completo no quadro. Romã e moedas, Prosérpina e Plutão.

sssssssssssssssssssssssssssHades (Plutão) com Prosérpina (Perséfone)

O misterioso Grão Vasco, considerado o maior pintor quinhentista, utiliza-se desse símbolo para representar ouro no quadro “Adoração dos Reis Magos”, pintado entre 1501 e 1506 onde a figura do Rei Mago Baltazar é substituída por um índio brasileiro, o que confere a este quadro um enorme valor documental pois pela primeira vez na Europa se representa um ameríndio.


Julgo essas moedas não terem expressão simbólica como Vanitas ou serem apenas uma alusão à efemeridade da vida, papel usualmente atribuído a naturezas mortas e à figura da caveira.

Questionado sobre a faca que se repete em todas as pinturas e até sobre a caixa que se encontra pintada em duas, decido continuar o tema, até porque se a romã e as moedas estão dotadas de tanta carga simbólica, não poderiam os outros ser meramente decorativos. Vejamos se os conseguimos de forma credível os encaixar no cenário herético.

Recuemos da morte ao nascimento, para encontrar significado para a faca. A faca tem como função cortar, a romã, porque foi necessária ao seu corte, e de um ponto de vista simbólico ou alegórico, cortar o fio da vida que se inicia no nascimento. Porcurei então pinturas portuguesas do Nascimento da Virgem, e não é o meu espanto quando encontro a seguinte pintura.

O desenrolar da fita, para quem tiver familiarizado com temas artísticos da antiguidade clássica e da renascença, transmite a sensação de “deja vu” relacionada com as famosas Parcas.


Em Roma, as Parcas determinavam o curso da vida humana, decidindo questões como vida e morte, de maneira que nem Júpiter podia contestar suas decisões. Nona tecia o fio da vida, Décima cuidava de sua extensão e caminho, Morta cortava o fio. Eram também designadas fates, daí o termo em ingles "fate"(destino). Na sua origem devem ter sido demónios ligadas ao nascimento, porém com o passar dos tempos ganharam as características enunciadas. Elas apareciam como fiandeiras fixando a vida humana.

Talvez seja este o significado aribuído à presença da faca em todas as pinturas a par da romã, aliás as parcas estão relacionadas com as deusas que referimos, mas por economia de espaço cortarei por aqui o fio quanto às Parcas.


Só nos resta a cesta ou caixa que aparece em duas das pinturas. Voltemos aos Mistérios da religião grega, porém apenas para remate do tema. “A representação última dos mistérios é o cesto fechado por um tampa, a cista mystica, e só o iniciado sabia o esta Kisté ocultava.” (Walter Burkert, a maior sumidade em religião grega, Religião Grega na epóca clássca e arcaica, pag. 528).

O REGRESSO

Palavras finais: Um dia perguntaram-me como era possível estar eu tanto tempo parado diante de uma pintura. Parado!!! Acabei de ir aos Ceus e de regressar dos Infernos.

A arte renascentista na qual se insere a pintura quinhentista seria bem mais simples, embora menos interessante, se fosse possível afirmar que cada símbolo tem apenas um significado, mas é raro ser assim. Um quadro pode incluir vários objectos com significados distintos, mas podem ser agrupados como se de notas musicais se tratassem para compor uma sinfonia, que neste caso seria o seu significado como um todo. Pode também acontecer esse quadro ter mais do que um extracto de leitura, mais, até pode vir a ter significados que nunca foram intencionados. Tal é a força do mundo dos símbolos. Já o eram em potência.

Os símbolos são a forma mais comum dos artistas transmitirem significados nos seus quadros, utilizando-se de objectos simbólicos. Alguns símbolos são fáceis de decifrar mas outros exigem mais explicações. Ao longo dos tempos os significados vão se alterando e perdendo-se, outros mantem-se ocultos por intenção deliberada de quem os desenhou, ficando à espera de que alguém um dia os traga à luz do entendimento.

Que seja esta a luz que vos traga do inferno para Tomar o Céu.

Deste quadro apenas direi que trata-se de uma caixa oferecida por Prosérpina a uma personagem que se identifica com a alma humana (qual?) e que quando a abriu descobriu lá dentro sono tendo por isso adormecido. No entanto foi salva do mundo de Prosérpina por outra personagem que se identica com o Amor (qual?). A iconografia da morte da Virgem tem raízes em Bizâncio e o termo designado para este episódio da Virgem é Dormição da Virgem, o qual deriva do termo dormir.


6 comentários:

Anónimo disse...

Tá giro.....

RUI GONÇALVES disse...

Obrigado. lol

Anónimo disse...

Então é que caixa é essa da gravura?

Anónimo disse...

Minha alma está parva. Nem sei que pensar. Se mais tivesses escrito mais teria eu lido com todo o gosto.
xc

Anónimo disse...

Trabalho de grande valor. Os meus sinceros parabens ao blog.

Anónimo disse...

bom muito bom